1 ano após tragédia que custou sua perna, menina brinca em ruína de casa

Família de Ana Clara vive em frente ao local que deslizou em Francisco Morato; menina precisou ser amputada: 'decisão mais difícil da minha vida', diz bombeiro

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Por Felipe Resk
Atualização:
Ana Clara usa prótese no lugar da perna amputada após desabamento Foto: HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO

FRANCISCO MORATO - Até poucas semanas atrás, Ana Clara do Nascimento, de 6 anos, fechava os olhos para tomar banho. Queria evitar olhar para baixo e ver que lhe falta a perna esquerda, amputada após ser vítima de um deslizamento em um temporal que deixou 25 mortos na Grande São Paulo, em março de 2016. O resgate de Clarinha, que ficou com o pé preso por uma viga, comoveu até mesmo bombeiros mais experientes. Isso para uma corporação que atende mais de uma ocorrência de desabamento ou soterramento por dia no Estado.

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Só em 2016 foram 584 registros em São Paulo, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública (SSP). O número é 12,7% maior do que no ano anterior, quando houve 518 notificações, e inclui de ocorrências sem vítimas, como quedas de telhado, a casos mais graves.

Um ano depois da tragédia, Clarinha vive em uma casa bem na frente da antiga, em Francisco Morato, localizada atrás de um córrego que transbordou na enchente. Muita coisa mudou nesse tempo. Completamente adaptada à prótese, a menina não para quieta. Brinca, corre, escala. Para surpresa da família, até faz troça da perna amputada quando, por exemplo, esbarra no sofá ou em uma cadeira. "Não fui eu, mamãe. Foi o Godzilla", é o bordão que repete desde que resolveu batizar a parte do corpo com o nome do monstro japonês.

A menina evita usar short para ir à escola Foto: HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO

Sentada no sofá da sala, Clarinha vê pela porta aberta os escombros do barraco que desabou sobre ela. Ali, em meio aos entulhos, virou seu lugar preferido para brincar. Ao lado dela, a cozinheira Antônia Costa Gonzaga, de 48 anos, mãe de criação, lembra que recebeu todos os móveis novos de doadores. "Quando me dizem que eu perdi tudo, respondo que Deus não levou minha maior riqueza: meus filhos."

Na casa nova, a família resolveu fazer a cobertura de telha e forro - e não mais de laje. "Minha única preocupação é construir um muro para separar do córrego", diz Antônia. A mãe teme uma nova enchente. Clarinha, não. "Essa casa não cai", repete para tranquilizar a família, quando se anuncia um temporal. Diferente de um ano atrás, a menina só evita usar short para ir à escola. Uma maneira que encontrou de os colegas não perguntarem por que a perna dela é feita de metal.

Fim do mundo. Naquela manhã de 10 de março, Antônia acordou assustada. Sonhara com chuva forte, ventos violentos, o barraco desabando encosta abaixo, familiares sumindo no lamaçal. A cozinheira não é de acreditar em presságio, mas notou que chovia em Francisco Morato. Em horas, viu a chuva virar temporal. A rua, um rio de lama.

À noite, as paredes já não aguentavam tanta água e infiltrações inundavam a sala, a cozinha, os quartos. Antônia não estava mais sonhando. "Acorda! É o fim do mundo!", disse aos filhos. Ela saiu a tempo de ver a casa desmoronar. "Cadê a Clarinha?", gritou, sem ter certeza se os outros poderiam ouvi-la na tempestade. A filha estava sob os escombros.

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Um estrondo, como se a casa estivesse rachando, antecedeu o desabamento. Com água na altura do peito, Antônia viu a filha Janaina Costa, de 29 anos, ser resgatada dos destroços com o rosto desfigurado por uma fratura no maxilar. A escuridão era completa, a rua inteira estava sem energia. Os bombeiros só chegariam cerca de três horas depois.

"A Clara não saiu, está morta embaixo do barranco", repetia a cozinheira, desesperada. Outro filho dela, Danilo Costa, o Dedé, de 23 anos, chamava pela menina aos berros. Pouco depois, a família ouviu uma vozinha no meio dos entulhos. "Estou aqui, Dedé! Tira eu!" A menina havia voltado para apanhar as sandálias no quarto e se escondeu embaixo da cama antes de a casa despencar. Um colchão amorteceu o impacto.

Clarinha entre os escombros do barraco que desabou sobre ela Foto: HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO

Sem protocolo. Naquela noite, o médico socorrista Raphael Caggiano, de 33 anos, do Grupo de Resgate e Atenção às Urgências e Emergência (Grau), estava na base dos Bombeiros na Casa Verde, a mais de 37 quilômetros de distância de Clarinha. Por causa do temporal, os bombeiros abriram mais de 200 chamados de moradores da Grande São Paulo.

Inicialmente, Caggiano foi acionado para um desabamento em Mairiporã, com ao menos oito mortos. A equipe, composta ainda por um enfermeiro e um bombeiro, encontrou um casal de idosos soterrado, mas vivo. "Nós tentamos, tentamos, tentamos, até que foi identificado que o morro iria desabar. Havia o risco iminente da nossa equipe ser soterrada", diz o socorrista. Houve um novo deslizamento. "Infelizmente, acabamos perdendo aquelas pessoas."

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O limite das equipes de resgate é a própria segurança. Segundo o socorrista, uma das principais orientações do curso é não se envolver emocionalmente com a vítima de um desastre. "Aquela pessoa está em um mau dia", é o que dizem aos médicos em preparação. "Há coisas que são inevitáveis. O que se pode evitar, pelo menos, é que a tragédia seja maior." Caggiano estava prestes a quebrar o protocolo.

No chamado seguinte, a equipe foi empenhada para retirar Clarinha dos escombros. Com o alagamento, a Pajero estacionou a cerca de 1,5 km de distância e o resto do trajeto precisou ser feito a pé. "Identificamos um local de risco semelhante ao primeiro, porém nos deparamos com uma criança", diz o médico. Os socorristas resolveram, então, que não sairiam do barranco mesmo se ele voltasse a deslizar. A tensão durou mais de oito horas.

Outras equipes chegaram para dar apoio e os bombeiros tentaram cortar a coluna, sem sucesso. "A Ana Clara ficou consciente todo o momento, sempre conversando com a gente, falando dos animais de estimação", afirma o socorrista. "Foi uma relação de amizade. Ficar com uma criança todo esse tempo cria um vínculo. Ela é uma menina linda."

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A madrugada era fria e a chuva não parava. Nem mesmo as mantas térmicas, toalhas e soro aquecido por vizinhos que ajudavam no resgate conseguiam mais manter a temperatura de Clarinha. A ameaça de hipotermia impôs um dilema a todos. "Ou nós corríamos o risco de perdê-la ou tirávamos a perninha dela", afirma Caggiano. "Nós, a equipe toda, optamos por salvá-la", diz. "Foi a decisão mais difícil da minha vida até hoje."

Horas depois, ao visitar áreas atingidas pela chuva, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) chamou de "heroico" o resgate dos bombeiros. "Eles anestesiaram, entubaram, operaram a criança no local", disse. O governador chegou a ir ao Hospital das Clínicas, onde Clarinha passou por cirurgia.

Os bombeiros também foram visitá-la, mas a menina não gostou. "Eles eram meus amigos. Que amigo tira o pé do outro?", disse, ainda internada. Durante o tratamento, Clarinha também não conseguia ver ninguém de jaleco sem demonstrar irritação. Até a psicóloga que a acompanhou precisou deixar de usar branco nas sessões com a garota.

"Foi muito difícil no começo, mas hoje ela está ótima. Ela mesma que se veste, pula, brinca de pega-pega. É uma criança normal", diz Antônia.À reportagem, Caggiano disse que gostaria de fazer uma visita à menina em breve. Ele ainda não sabe, mas Clarinha também mudou de ideia recentemente. Agora, a menina pensa em ser médica.