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Últimos ex-combatentes relembram a saga de 32

Memórias são os últimos registros vivos de um acontecimento épico que, em pouco tempo, não terá mais testemunhas presenciais

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Por José Maria Tomazela
Atualização:
Zuleika lembra que seu ímpeto foi de ir para a frente de combate, com a primeira tropa que saísse Foto: Epitácio Pessoa/Estadão

Na pequena Vera Cruz, cidade de 10,7 mil habitantes na região de Marília, interior de São Paulo, 'seu Totó' é uma lenda viva. As pessoas que o veem caminhando a passos lentos em direção à padaria ou ao salão de barbeiro o tratam com reverência. É 'bom dia, seu Totó, boa tarde, seu Totó, como vai a saúde?', enquanto abrem caminho para o senhorzinho calvo, de pouca estatura, mas porte altivo que responde aos cumprimentos com simpatia. Com 103 anos completados no dia 15 de junho, Antonio Andrade Guimarães, o 'seu Totó', é um sobrevivente da Revolução Constitucionalista de 1932.

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Dos 35 mil paulistas que pegaram em armas contra a ditadura de Getúlio Vargas há 84 anos, apenas nove ainda vivem, conforme cadastros da Sociedade Veteranos de 32 - MMDC e apuração da reportagem. Suas memórias são os últimos registros vivos de um acontecimento épico que, em pouco tempo, não terá mais testemunhas presenciais. O número de sobreviventes diminui ano a ano. Em 2012, restavam 26, segundo o MMDC. Levando em conta que os combatentes tinham 18 anos à época da revolução, os que ainda vivem são no mínimo centenários.

Poucos têm a vitalidade de 'seu Totó', embora ele reclame que a saúde está mais ou menos. “De vez em quando dá alguma tontura, por isso parei de dirigir e já não ando como antes, mas não sou de ficar parado.” Ele sente falta da esposa, falecida em 2003, e sempre que pode vai ao cemitério para “conversar” com ela. As duas irmãs Maria Aparecida, de 96 anos, e Nair, de 100, moram com ele numa casa típica do interior, sólida, arborizada e com jardim. “As duas estão doentes, com Alzheimer. Tenho um irmão em Marília, também doente. As cuidadoras me ajudam.”

Quando começa a relembrar a revolta dos paulistas, as cenas voltam nítidas à sua mente. “Eu era um moço, 18 ou 19 anos, entrei como voluntário e passei 78 dias no campo de batalha, mudando de uma trincheira para outra. Os soldados do Getúlio invadiram nossa trincheira, machucaram alguns dos nossos e fizeram prisões, quando não mataram. Eu escapei por pouco. Meus companheiros foram presos e levados para a Ilha das Flores, no Rio de Janeiro.”

As batalhas mais cruentas aconteceram na região de Eleutério, um vilarejo na divisa com Minas Gerais. Ele ainda lembra o estrondo dos canhões e dos rasantes dos aviões inimigos. “Eu era de Sertãozinho e nós fomos em vinte, mas não sei quantos voltaram. Alguns companheiros eu nunca mais vi. Os feridos eram levados para o hospital de Campinas e muitos morriam por lá.”

Nas trincheiras, o ex-combatente passou fome e sede, e reclama da falta de comando. “A revolução acabou num dia, mas só ficamos sabendo dois dias depois.” Para 'seu Totó', embora tenha perdido a guerra, o Estado de São Paulo saiu fortalecido. “Valeu a pena, porque o povo ficou mais unido. Muitas vidas tombaram para que São Paulo fosse essa grandeza que é hoje.”

Depois da revolução, Guimarães tornou-se professor, diretor de escola e ajudou a fundar o Rotary Club de Vera Cruz. Ele será homenageado no dia 9 pela Polícia Militar de Marília. “Vão me mandar um carro. No ano passado, veio uma capitã me buscar”, se orgulha.

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O ex-combatente Arlindo Leonardo Ribeiro, que neste mês completa 104 anos, é o único constitucionalista ainda vivo em Barretos, mas luta contra o mal de Alzheimer, que vai aos poucos minando as lembranças do campo de batalha. “Lembro pouco, lembro pouco... quem é mesmo o senhor? Os tiros, muitos tiros, a gente se escondia, todos tinham de caminhar muito embaixo da chuva e dos tiros, falei dos ataques? Muita gente ferida.”

Arlindo volta ao presente, diz que não está bem, que pegou uma gripe feia recentemente. “Tem feito frio, nunca vi tanto frio...” De repente, um lampejo e surge outra lembrança do campo de luta. “Nosso exército que estava em Mogi Mirim se retirou, fomos andando umas vinte léguas até Campinas, pois não tinha condução. Morreram muitos nos combates, nos bombardeios, não gosto de lembrar.”

Ribeiro está há onze anos sob os cuidados de Maria Helena Bueno Ortega, sua cuidadora pessoal. Ela conta que o casal de filhos do ex-combatente mora na mesma rua e está sempre ali, atendendo o pai. “Agora, com a doença, ele fica mais em casa, mas gosta de conversar. Tem momentos de muita lucidez”, relata.

Maria de Lourdes Pinto Picarelli, que fez 103 anos no dia 21 de junho, atende pessoalmente o telefone e, informada de que a conversa será sobre a Revolução de 32, pergunta: “Quer que fale de mim ou do meu marido?” Maria de Lourdes explica que só se apresentou como voluntária em 32 depois que o então namorado, Laércio Picarelli, foi convocado para lutar com as tropas paulistas contra Getúlio.

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Incorporado como cabo ao Batalhão 23 de Maio, Laércio seguiu para a frente de batalha na divisa com Minas. “Eu tinha 19 anos e, ao invés de ficar rezando por ele, pensei em ser mais útil e me apresentei como voluntária na Casa do Soldado. Ali a gente preparava lanches, servia café e cuidava das roupas. Era um ponto de apoio para os combatentes.” Ela se lembra da correria para encaminhar os feridos ao hospital, providenciar ataduras e remédios. “Houve luta bem perto, no caminho de Bragança. Os paulistas foram atacados por uma tropa da Bahia. Morreram três voluntários de Americana.”

No auge dos combates, o pai de Lourdes mandou a família para Campinas e ela foi obrigada a acompanhar. “Quando voltamos, a revolução tinha acabado. Os soldados começaram a chegar, mas meu namorado foi um dos últimos. Quase morri de aflição.” Ela se casou com Laércio, que se tornou farmacêutico. “Tenho até hoje o quepe dele com o nome e o número do fuzil usado em combate.” O neto Carlos Henrique Picarelli Marcolino produziu um filme sobre a participação de Maria de Lourdes como voluntária na revolução.

O cinema ainda deve seu tributo à história de vida de Zuleika Sucupira Kenworthy, de 103 anos completados em 24 de novembro de 2015. Quando a reportagem a procurou em sua casa, em Sorocaba, ela tinha viajado a São Paulo para cuidar de seus negócios que ainda acompanha pessoalmente. A memória, perfeita, tem detalhes de tudo. Ela só não ouve bem, por isso pede ao interlocutor que fale de frente para ler os lábios ou que escreva numa folha de papel.

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Zuleika fala da revolução como se tivesse sido ontem. "Meu pai faleceu em 1923 e ele lia o Estadão desde o primeiro número. Eu leio primeiro o Estado de S.Paulo, depois leio os outros jornais porque as boas notícias estão primeiro no Estadão. Os Mesquita pode se dizer que eles fizeram a revolução”, vai contando. “O Getúlio estava armando para tomar conta de tudo e quando a revolução começou, no dia 9 de julho, o jornal publicou 'Estamos em Guerra'. O Estadão dizia que o Getúlio queria se instalar no Estado de São Paulo.”

Jovem de 19 anos e moradora de São Paulo, Zuleika lembra que seu ímpeto foi de ir para a frente de combate, com a primeira tropa que saísse, para ajudar a equipe de enfermagem. “Mas precisava ter 21 anos, então minha professora da época, dona Alice Teixeira, perguntou se a gente queria trabalhar na revolução. Claro que eu queria, e fui às 7 da manhã para o Cine República, como ela mandou. Quando cheguei, as cadeiras tinha sido afastadas e o cinema inteirinho estava cheio de mesas.  Sentamos cinco em cada mesa e ficamos incumbidas de fazer os pacotinhos de primeiros socorros.”

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Além de Zuleika, três irmãs também foram, ficando em casa só uma delas, porque era paraplégica. “ A inspetora dava as ordens, tinha de fazer o pacote com um vidrinho de iodo, uma atadura, dois pedaços de gaze, um rolinho de esparadrapo e um alfinete. Era bem pequeno para ir na mochila de cada soldado. Trabalhávamos ali 350 moças e na hora do almoço vinha um sanduíche de cada uma. Não tinha repetição, nem saída de almoço, quem quisesse levava um lanche extra. Era uma organização fenomenal.”

Ela se lembra que as famílias ofereciam seus bens para a revolução. “Minha mãe ligou e ofereceu uma bicicleta e um automóvel. Depois, quando acabou a revolução, levaram o carro em casa do mesmo jeito que foi, com o tanque com gasolina. A bicicleta foi devolvida em boas condições, não tinha nada estragado. Muitos anos mais tarde, eu já estava promotora, e um juiz me disse que tinha andado naquela bicicleta como estafeta na revolução, quando tinha 12 anos. Usaram muito, mas devolveram inteira.”

A voluntária conta que os primeiros socorros iam também para a Cruz Vermelha. “Fiquei sabendo que um parente nosso, José Pestana, levou um tiro e foi salvo pelo nosso pacotinho. São Paulo virou campo de guerra, todo mundo trabalhando para a revolução. Em uns 15 dias começou a faltar carne, arroz, não tinha mais açúcar, nem sabonete. Uma pessoa nossa ficava nas filas toda manhã para comprar o que fosse possível.”

Toda a família de Zuleika estava na revolução. “Foram formados vários grupos, de acordo com as necessidades da guerra. Minha mãe costurava manga de uniforme de soldado. Ela fazia parte das costureiras de Santa Rita de Cássia, recebia os pares de manga e pregava no uniforme. Minha irmã paraplégica ajudava. Tinha outro grupo que pregava botão em farda. Minhas tias também fizeram capuzes de tricô para os soldados, pois era inverno e fazia frio.”

Segundo ela, no meio do caos da revolução, havia união e ordem. “Não sei como era organizado, mas tudo funcionava. Meu irmão era estudante de engenharia, saía às 7 da manhã e voltava à noite porque ficava fazendo armas para a guerra. Tudo o que fosse de ferro era mandado para a faculdade de engenharia para transformar em material de guerra. A casa da minha mãe na Aclimação tinha uma grade de 35 metros e foi tirada e levada para lá. Eu conto o que acontecia com minha família, com meu grupo, mas isso você multiplica por toda a população de São Paulo.”

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Para a jovem, o fim dos combates foi tão surpreendente quando o início da revolução. “Um dia chegamos para trabalhar e o salão estava vazio. Aí disseram que tinha acabado a revolução. Foi um abalo. Meu tio, Luiz Sucupira, tinha sido preso e foi parar na Ilha das Flores (no Rio). Não demorou, chegou outro tio preso. Era delegado de polícia em Amparo e foi detido pelas tropas do sul. Só que São Paulo não se entregou. A política, que era dividida em dois partidos, se uniu e os partidos se juntaram. Em questão de dez dias, a vida começou a ficar normal.”

Hoje, ela acha que São Paulo tinha de fazer a revolução. “Não tinha outro jeito, pois Getúlio estava indo indiscutivelmente para o lado da ditadura. São Paulo era contra e se opôs. A revolução não foi planejada, foi feita por necessidade. Se tivessem planejado, os paulistas teriam mais armas, mais estrutura, não tinha sido tudo improvisado. A revolução saiu porque Getúlio queria dominar São Paulo por birra. Mato Grosso ficou com os paulistas, mas Minas falhou, tinha dito que ficava com São Paulo e não ficou.”

Zuleika foi a primeira mulher na América Latina a ingressar no Ministério Público, numa época em que a carreira era exclusivamente masculina. Também foi a primeira procuradora do Estado de São Paulo e, em 1954, curadora de menores na capital. Os pioneirismos renderam medalhas e diplomas guardados com carinho. Ela também se dedicou à música e ao magistério. Da revolução, além das medalhas e do anel por sua família ter doado ouro para a causa paulista, ela guarda a carcaça uma granada que achou no quintal de casa.

O alagoano Agenor Silva Lima, também tem 103 anos e mora sozinho na região do Ipiranga, em São Paulo, desde que ficou viúvo, em 2008. O ex-combatente foi condecorado pelos atos de bravura durante as batalhas. Lima seguiu a carreira militar, servindo ao Exército brasileiro. Quando completou 100 anos, renovou sua carteira de habilitação no Detran da capital. O herói de 32 ainda é visto caminhando nos jardins do Museu de Ipiranga. Ele pediu desculpas por não poder conversar a reportagem. “Estou ouvindo muito mal, você teria que gritar.”

Capitão da reserva da Polícia Militar, o ex-combatente Benedito Monteiro, de 101 anos, conhecido como 'Capitão Benê', ainda vive em Tremembé, no Vale do Paraíba. O presidente da Câmara Adriano dos Santos (PDT) conta que ele será homenageado no dia 27 de agosto, três dias antes de completar o 102º aniversário. Outro ex-soldado constitucionalista ainda vivo também seguiu a carreira militar: Irany Paraná do Brasil tem 102 anos e mora em São Paulo. Ele chegou a coronel da PM e, após ir para a reserva, dedicou-se a escrever livros sobre a revolução.

O MMDC e a prefeitura de Santos não tinham informações sobre o ex-combatente João da Cruz Batista, de 104 anos, morador da cidade praiana . Em julho de 2015, ele foi homenageado e estava bem de saúde. A reportagem não conseguiu contato com o ex-combatente Luiz Ferreira Junior, de Bragança Paulista. No MMDC, seus dados não estavam atualizados.

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