Trens turísticos voltarão a passar pelo túnel dos heróis de 32 entre SP e MG

Composição fará trajeto turístico entre Cruzeiro e Passa Quatro, no palco de um dos mais duros focos de resistência ao avanço federal durante a Revolução Constitucionalista

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Por José Maria Tomazela
4 min de leitura

ENVIADO ESPECIAL A CRUZEIRO – Em 2020, as locomotivas voltarão a transpor um dos símbolos mais emblemáticos da Revolução de 1932. A Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF) fará circular um trem turístico entre Cruzeiro, no Vale do Paraíba, e a mineira Passa Quatro, passando pelo Grande Túnel da Mantiqueira, onde as tropas paulistas montaram um dos mais duros focos de resistência ao avanço dos federais. A recuperação dos trilhos terá início ainda em agosto. 

'Os buracos no túnel podem ter sido produzidos por balas de fuzil ou estilhaços', explica a historiadora Cláudia Ribeiro, de Cruzeiro Foto: EPITACIO PESSOA/ESTADÃO

Historiadores contam que, na fase final do conflito, os paulistas descarrilaram uma locomotiva no túnel para bloquear a passagem do inimigo, enquanto recuavam estrategicamente para Guaratinguetá e Cruzeiro. Localizado na Garganta do Embaú, num dos pontos mais intransponíveis da serra, o túnel fazia a ligação entre Minas, São Paulo e Rio, através da Estrada de Ferro Sul Mineira. Em seus 997 metros de extensão, foram travados alguns dos mais sangrentos combates da guerra civil. Inaugurado em 14 de junho de 1884 pelo imperador D. Pedro II, o túnel ainda guarda as marcas do enfrentamento em suas paredes de tijolos revestidos com massa.

“Esses buracos podem ter sido produzidos por balas de fuzil ou estilhaços”, explica a historiadora Cláudia Ribeiro, diretora do Museu Histórico Major Novaes, de Cruzeiro. Segundo ela, a passagem ferroviária da Mantiqueira foi o último foco da resistência paulista à entrada das tropas federais no front leste da guerra civil. “Os federais só conseguiram tomar Cruzeiro bem no fim da revolução e, quando entraram na cidade, foi para assinar o cessar fogo, após a rendição dos paulistas. O armistício que encerrou a revolução, em 2 de outubro de 1932, foi assinado no Colégio Dr. Arnolfo Azevedo, até hoje uma escola do município.”

Como aconteceu nas principais frentes de batalha, Cruzeiro entrou na guerra por ter sido, na época, um importante entroncamento ferroviário, localizada próxima das divisas. Quando estourou a revolução, os trens passaram a ser usados para levar soldados e armas para as linhas de frente e o túnel se tornou estratégico para os dois lados. “A tropa paulista seguiu de trem para tomar Passa Quatro, em Minas. Quando foi obrigada a recuar, ocupou posição naquele ponto da Mantiqueira, de forma que, do outro lado, os federais só chegavam até o túnel e não conseguiam ir adiante. Foi no túnel que os paulistas usavam as matracas que, com o eco, pareciam metralhadoras.”

Conforme a historiadora, a logística da guerra, na região, estava centrada nos trilhos. Inicialmente, as tropas paulistas que chegaram a Cruzeiro de trem se aquartelaram na estação e em outras dependências ferroviárias. Os jardins do Solar dos Novaes, casarão de 1846 tombado e restaurado pelo Condephaat, órgão do patrimônio paulista, foram usados como acampamento pelos soldados. O imóvel pertencia à família de Manuel de Freitas Novaes Neto, o capitão Neco, um dos heróis de 32 e o responsável pela defesa do túnel da Mantiqueira.

Em 5 de agosto, quando seguia com uma patrulha para restabelecer as agulhas de um desvio, para que o trem blindado avançasse, ele foi cercado por uma tropa inimiga. Conta-se que um sargento federal gritou: “Renda-se, paulista!”. O capitão Neco, armado só com uma espada, respondeu: “Um paulista morre, mas não se rende.” Ele ainda foi socorrido com vida, mas morreu horas depois. O ato de heroísmo contribuiu para que Cruzeiro fosse declarada por lei estadual de 2008 a Capital da Revolução.

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Abandono. Em 1991, com o fechamento do ramal de Cruzeiro a Três Corações, o túnel e a ferrovia foram abandonados pela Rede Ferroviária Federal. No lado mineiro da ferrovia, a ABPF já mantém o Trem Turístico da Mantiqueira, que circula em fins de semana e feriados. 

O projeto do trem turístico de Cruzeiro já saiu do papel com a compra, pela ABDF, de parte dos 40 mil dormentes que serão usados para recompor os 24 km de trilhos entre a estação e a entrada do túnel. Conforme o presidente Bruno Crivellari Sanches, 99% dos trilhos estão em bom estado. Bruno trabalha com o pai, Jorge Luis Sanches, na oficina de recuperação de locomotivas a vapor e a diesel, em Cruzeiro.

“Meu pai e meu avô fizeram parte da Revolução e tinham ligações com a ferrovia. É um patrimônio importante que está abandonado. Estamos acertando as parcerias e, em agosto, iniciamos a recuperação dos primeiros seis km”, disse Jorge.

A prefeitura de Cruzeiro informou que a estação ferroviária também será restaurada. O prédio foi inaugurado em 1878, na antiga Estrada de Ferro D. Pedro II, que depois se tornou E.F. Central do Brasil. Era também o ponto de partida da estrada de ferro mineira. 

Marcelo Oliveiralevou a filha Veronica Avalone para conhecer o interior do Túnel da Estrada de Ferro Sul Mineira, que liga Cruzeio a Passa Quatro. Foto: Epitácio Pessoa/Estadão

O caminho para o blindado da morte

Os trilhos serviram para suprir a falta de recursos bélicos das forças paulistas que, desde o movimento armado de 1930, deixaram de receber investimentos do governo de Getúlio Vargas. “Aí prevaleceu a criatividade do paulista e surgiu o trem blindado, que a nossa propaganda pintava como algo terrível”, afirma o pesquisador Eric Lucian Apolinário, autor do livro Inverno Escarlate – 1932 – Vida e Morte nas Trincheiras do Front Leste, lançado em novembro. “Eram seis. Uma composição um tanto sinistra, que dava medo nos soldados federais. O trem chegava até próximo das trincheiras e despejava a artilharia. Na verdade, mais assustava do que era eficiente.” 

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Só que o suporte dado pelas ferrovias à revolução cobrou um preço caro. “Além do bombardeio de estações e linhas, no fim, já no desespero da retirada das tropas paulistas, as pontes eram dinamitadas ou incendiadas para retardar a perseguição.” 

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