Solteiros enfrentam desafios para realizar sonho de serem pais

Cadastro Nacional de Adoção tem 202 interessados que não são casados, mas querem ter filhos. Os que já adotaram mudam a rotina de trabalho e até de endereço para receber as crianças, mas ainda esbarram em resistências sociais e dificuldades do di

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Por Fabiana Cambricoli
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Aos 29 anos, o advogado Hélio Ferraz de Oliveira já ocupava um cargo de destaque em um grande escritório da capital paulista e levava de forma confortável sua vida de solteiro. Do dia para a noite, o apartamento onde morava ganhou mais três moradores. Os irmãos Paula, Patrícia e Pedro (nomes fictícios), então com 9, 5 e 4 anos, respectivamente, deixaram o abrigo onde viviam para ganhar um pai e um lar. Oliveira deixava a vida tranquila de um jovem solteiro para realizar o sonho de ter filhos, mesmo que aquilo representasse o maior desafio da sua vida.

“Foi um pouco assustador no começo, senti muito impacto em estar sozinho com três crianças e ainda ter de conciliar com a minha vida profissional”, conta ele, hoje com 31 anos. “Pode parecer loucura adotar três de uma vez, mas eu já tinha um carinho muito grande por essas crianças, trabalhava como advogado voluntário do abrigo e já os conhecia. Quando vi os três voltando para o abrigo, depois de terem passado dois anos lá da primeira vez, resolvi que ia tentar a adoção.”

Oliveira ainda é exceção no País: solteiro, ele decidiu adotar três irmãos que estavam em um abrigo Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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Os pais biológicos dos três menores perderam a guarda dos filhos após episódios de negligência.

Oliveira ainda é um dos poucos brasileiros solteiros que adotaram crianças. Dos 31.600 pretendentes inscritos no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), 202 são homens solteiros, o que equivale a apenas 0,6% do total. A grande maioria dos interessados (28.200) se cadastra como casal. Entre os solteiros que aceitam o desafio, a maioria tem entre 31 e 50 anos, não tem filhos adotivos nem biológicos e mora nos Estados de São Paulo, Minas Gerais ou Paraná.

Independentemente do perfil, os pais adotivos solteiros têm como história comum a mudança radical da rotina: muitos tiveram de mudar de emprego e de casa com a chegada das crianças. Oliveira decidiu deixar o bom cargo na empresa para abrir o próprio escritório e ter horários mais flexíveis.

Já o gerente de Marketing Christian Heinlyk, de 41 anos, trocou de apartamento e reorganizou os horários no trabalho para poder receber, em 2007, Pedro Vinicius, hoje com 15 anos. Quatro anos mais tarde, ele adotou o irmão biológico de Pedro, Gustavo, de 12.

“Sempre quis adotar, mas precisava me organizar. Desde a data em que tomei a decisão até entrar com o pedido foram mais de dois anos, reformando a casa, participando de grupos de adoção. Esse ‘pré-natal emocional’ foi importante”, conta.

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Mesmo com todo o planejamento, o pai de primeira viagem passou por apuros. “No dia em que o Pedro chegou, só tinha nuggets na geladeira. Fiz um arroz para acompanhar, mas ele comeu e disse que não tinha gostado. Bateu um desespero. Achei que não ia conseguir alimentar meu filho.”

Mudanças sociais. Para os pais solteiros, parte dos desafios não está dentro de casa. Eles pedem que a sociedade também se adapte às novas composições familiares. “Falta estrutura. Cansei de voltar do clube com as meninas molhadas no carro porque não tinha um vestiário familiar e eu, obviamente, não podia entrar no feminino para ajudar a dar banho nelas”, conta Oliveira.

Para o assistente social Gilberto Semensato, de 49 anos, a dificuldade foi conseguir tirar a licença-paternidade com a mesma duração daquela dada às mulheres. Em 2008, quando adotou Ana Luiza, hoje com 7 anos, a legislação ainda não previa o mesmo direito para homens e mulheres e ele teve de esperar um ano até que a Justiça desse parecer favorável.

Alguns questionamentos também fazem parte da rotina. “Sempre há alguma indignação ou estranheza dos amiguinhos da Ana Luiza diante do fato de ela não ter mãe, mas, desde pequena, fui contando sobre sua adoção, sem que houvesse nenhum demérito nisso ou uma ‘anormalidade’, afinal, um lar com afeto não fica devendo nada para a família convencional”, diz ele.

Vínculo é mais importante do que composição familiar

Embora seja importante para a criança conviver com figuras masculinas e femininas, a qualidade da relação é mais importante no desenvolvimento infantil do que a composição familiar, segundo o psicólogo Aurélio Melo, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

“O que constitui afeto e segurança é a presença, o vínculo. A criança pode ter uma família tradicional, mas na qual os pais são muito frios, pobres afetivamente”, afirma ele.

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Além disso, diz o especialista, hoje em dia a criança tem possibilidade de ter maior contato com outras figuras nos ambientes fora de casa. “Ela vai mais cedo para a escola, vai à casa de amigos, tem contato pelas mídias. Atualmente, a família não é mais a única referência.”

O psicólogo ressalta, porém, que, no caso de uma adoção por um pai ou mãe solteiros, a decisão tem de ser ainda mais ponderada do que a tomada por um casal. “É preciso ter consciência de que o pai vai ter de renunciar a muita coisa. Isso exige maturidade. Ele vai ter de abdicar dos seus planos individuais e dar prioridade à criança. Só que, no caso de um solteiro, não há como revezar ou dividir as responsabilidades com um companheiro”, lembra o psicólogo.

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