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Com bares e pancadões, queixas por barulho crescem e superam nível pré-pandemia em São Paulo

Psiu recebeu quase 13 mil chamados até semana passada, o dobro das reclamações no mesmo período de 2021; movimento de bares e música se somam a ronco de motos

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Por Gonçalo Junior
Atualização:

As reclamações por barulho aumentaram na cidade de São Paulo em 2022. O Programa de Silêncio Urbano (Psiu), da Prefeitura, recebeu, até a semana passada, 12.969 chamados, mais que o dobro do registrado no mesmo período de 2021. O patamar supera até o nível pré-pandemia – no primeiro semestre de 2019, foram 9.443 queixas.

Em todas as regiões da capital, o barulho tira – literalmente – o sono de moradores, que se mobilizam. Na zona norte, o foco são os eventos no complexo do Anhembi e no Campo de Marte. Na Vila Madalena, na zona oeste, a queixa é a música alta em bares. No Butantã, na mesma região, vizinhos reclamam de pancadões itinerantes e mesmo de bares que funcionam em contêineres e, sextas e sábados, fazem shows ao ar livre sem o menor constrangimento.

Trecho próximo aos cruzamentos com as ruas Fradique Coutinho e Mourato Coelho, na Vila Madelena, na zona oeste de São Paulo. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

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O Psiu fiscaliza os locais que ultrapassam os limites de som na cidade. A média é de 60 decibéis (dB) durante o dia; 55 à noite e 50 de madrugada. Em zonas residenciais, os limites são menores. A irritação dos ouvidos humanos aumenta a partir dos 60 dB, com os latidos de um cachorro, por exemplo; aspiradores de pó produzem 85 dB, enquanto um caminhão gera 105 decibéis.

Moradora a dois quilômetros do Sambódromo, a administradora Maria Helena Spaziani conta que é obrigada a dormir na sala nos fins de semana de shows, por causa do barulho que chega à Casa Verde. No mesmo bairro, o produtor cultural João Moreirão, de 65 anos, recorre a fones de ouvido ou simplesmente foge para a casa do filho, em Perdizes. “Se aumentar muito a TV, incomodo o vizinho”, diz ele.

Por causa de reclamações assim, o bancário aposentado Geraldo Gomes, de 61 anos, também morador da região, criou em 2018 o movimento “Anhembi, queremos dormir”, página no Facebook com quase 800 membros. Gomes classifica os shows como “pancadões com ingressos” e destaca que não tem nada contra festas. Só cobra o cumprimento da lei. Depois de inúmeras queixas, os dois locais (shows no Anhembi e um estabelecimento comercial dentro do Campo de Marte) foram multados em maio e junho. Conforme o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), uma banda produz mais ou menos 115 dB.

O Anhembi está em uma Zona de Ocupação Especial (ZOEs), espaço que abriga casas de shows e estádios e necessita de regulamentação específica. Em maio, vereadores da base governista apresentaram um projeto para aumentar o limite de barulho de 55 dB para 85 nesses entornos. O projeto, que provocou indignação em associações de moradores de áreas vizinhas, está parado. 

Pancadões incomodam vizinhos

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Fora das casas de shows, a música alta incomoda ainda mais. Os moradores do Jardim Jaqueline, no Butantã, dizem não aguentar mais os pancadões, de sexta a domingo. Eles são itinerantes: carros customizados com paredões de som promovem bailes sempre em locais diferentes. O Estadão teve acesso a um relatório preparado pelos moradores e encaminhado à Polícia Militar. As medições registram 80 decibéis em apartamentos a 300 metros do pancadão. “Esse é um problema de saúde pública”, diz um morador que prefere não se identificar, pois teme represálias.

Adelaide Nardocci, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, explica que a exposição à poluição sonora afeta a saúde e o bem-estar. “Entre os efeitos crônicos (após exposições repetidas por período prolongado), os mais importantes são o aumento do risco de doenças cardiovasculares; alterações no funcionamento do sistema endócrino, podendo resultar em obesidade abdominal; diabete tipo 2 e distúrbios do sono, que trazem prejuízos para a saúde mental e a realização das atividades diárias”, afirma.

Trecho da Vila Madelena, zona oeste de São Paulo. Barulhos da regiãoboêmia têmcausado desconforto aos moradores da região. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Moradores reclamam ainda da demora no atendimento do Psiu e de fiscalizações no horário diurno (quando não há ruído). A professora Carolina Sollero, de 45 anos, moradora do Instituto de Previdência, na zona oeste, fez duas reclamações sobre o excesso de ruído em um restaurante vizinho de muro. Os registros são de 19 de novembro e 19 de fevereiro. Até hoje, a reclamação não foi atendida pela Prefeitura. A questão só foi resolvida depois que ela chamou a PM diversas vezes.

A poluição sonora é ainda mais flagrante nos bairros como a Vila Madalena, local de moradia, trabalho, cultura e lazer. Na descida da Rua Aspicuelta, entre a Fidalga e a Mourato Coelho, quatro dos seis estabelecimentos tocavam música alta por volta das 22h30 na última sexta-feira.

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Samba, pagode e ronco de motos se misturam. Distante 100 metros, onde existem moradores, o cenário era parecido, com pelo menos três locais tentando fisgar clientes pelo ouvido. Em um deles, uma roda de samba projetava o som dos instrumentos até do outro lado da calçada. Outro componente: o barulho do motor de um Camaro vermelho rasgava o começo da noite. E as motos dos entregadores zuniam, uma após a outra.

O cenário do bairro boêmio tem ainda locais que vendem bebida delivery, mas que atendem quem passa e para. É assim na Fradique Coutinho. O muro baixo das casas facilita a propagação do som. “Temos muitos bares novos que demoram para se adaptar às regras”, diz Cassio Calazans de Freitas, presidente da Sociedade Amigos da Vila Madalena (Savima).

Depois da 1h, horário em que os bares fecham, surgem outros atores nas ruas: os vendedores ambulantes. Com um engradado de bebida na parte traseira de um Volkswagen Fox, iluminado por uma lâmpada acesa com ligação direta no motor, Antonio (nome fictício) oferece cerveja a R$ 5 na rua Harmonia. O rádio do carro está ligado na rua com residências. Antonio diz que já ia embora porque o dia estava fraco.

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Pancadão no Butantã tem irritado vizinhos Foto: Alex Silva/Estadão

A exemplo do que aconteceu na zona norte, os moradores também se mobilizaram. Em Pinheiros e na Vila Madalena, a primeira providência foi reclamar nos canais da prefeitura. Funcionou. A presença de automóveis como esse do Antonio diminui depois da ação da Prefeitura. A segunda medida foi a criação de um abaixo-assinado, que já conta com 900 assinaturas, reclamando do barulho excessivo e das aglomerações. “Moradores e comerciantes podem conviver em harmonia desde que a liberdade de uns não seja o sofrimento de outros”, diz Ana Wilheim, presidente da Associação dos Moradores da rua Min. Costa e Silva e Adjacências.

Durante encontro com a Prefeitura, representantes dos bares apresentaram uma proposta de autorregulamentação, em que cada um vai fiscalizar a atuação do vizinho. A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) cobra mais energia da Prefeitura. A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) cobra mais ação da Prefeitura. “Trabalhamos para conscientizar os bares. Alguns locais de entrega vendem as bebidas na rua. Nesse ponto, a Prefeitura tinha de ser mais enérgica”, afirma Percival Maricato, presidente da entidade.

O poder municipal, por sua vez, informa que foram aplicados 220 termos de orientação e 239 autos de multa por emissão de ruídos acima do permitido em lei de janeiro até junho de 2022.

Por causa do barulho, a advogada Giuliana Martins Lopes, moradora da Vila Madalena,precisausar fone de ouvido e fechar as janelas para trabalhar em casa Foto: Daniel Teixeira / Estadão

Essa retomada também envolve outra fonte de ruído: a construção civil. Moradora da Vila Madalena desde a infância, a advogada Giuliana Martins Lopes, de 32 anos, sofria com um bar com música tão alta que podia ser ouvida do seu quarto no primeiro andar do prédio na rua Harmonia. Depois de muita reclamação – dela e dos outros dos moradores -, o estabelecimento fez uma cobertura com isolamento acústico. Problema resolvido? Nem tanto. Neste ano, ela sofre com o barulho das obras de construção civil de vários empreendimentos na região. Para trabalhar, ela recorre aos fones de ouvido e às janelas fechadas.

Barulho gera ação do Ministério Público

O barulho já preocupa o Ministério Público de São Paulo. Na semana passada, o tema foi alvo da audiência pública “Impactos do Ruído na Saúde e no Conforto da População”, promovida em conjunto com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Masseran afirma que uma das soluções é a criação de uma legislação para a prevenção do ruído. O promotor Jorge Masseran revela que 30% dos inquéritos civis da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente tratam de ruídos. “Há ruídos evitáveis, que podem ser contornados com o uso da tecnologia. Sobre os inevitáveis, é possível criar barreiras naturais ou de engenharia para reduzir danos”, sugere.

O físico Marcelo de Mello Aquilino, do IPT, afirma que as edificações de bares e restaurantes devem ser construídas garantindo alta isolação sonora de paredes, janelas, portas e coberturas para que o ruído interno seja atenuado. “Outro aspecto importante é a utilização de sistemas de portas duplas, isto é, existir uma antecâmara entre a porta externa e a porta de entrada”, recomenda. 

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Em dezembro de 2021, a equipe técnica do IPT se reuniu com a Promotoria de Justiça de Meio Ambiente da Capital para definir uma estratégia comum para enfrentar o impacto da saúde no ruído da população. “A atual legislação estabelece limites de ruído, porém não avalia a incomodidade que provoca. A capital paulista não conta com uma política pública de combate ao ruído”, afirma Ros Mari Zenha, pesquisadora do IPT.

O MP abriu no início deste ano um procedimento administrativo na Cidade Tiradentes, zona leste, para acompanhar a discussão entre a comunidade e o poder público sobre sete pancadões que provocam barulho excessivo ao longo das madrugadas. A intenção é conciliar saúde, lazer, sossego, segurança pública, cultura e meio ambiente, indo além das estratégias de repressão. 

“Nas áreas centrais de município, tais eventos parecem ocorrer com menor frequência. Boa parte dos jovens desses locais dispõem de opções de lazer e cultura mais facilitadas, diferentemente dos jovens da periferia”, diz trecho do documento.  

A legislação existente deve ser cumprida. É o que defende Sérgio Reze, diretor de Relações Institucionais do Movimento Defenda São Paulo. “Temos um bom regramento. O que não tem é a ação eficiente do poder público para fazer a lei ser aplicada”, citando o Plano Diretor e a Lei de Zoneamento Urbano.

Existem casos em que o diálogo funciona. Cassio Calazans de Freitas conta que mediou uma discussão entre um bar na rua Aspicuelta e um grupo de moradores da rua Anhaia sobre o barulho. A saída foi mudar a posição das caixas de som e a colocação de uma janela de vidro. “Foi um caso isolado, mas tenho esperança”, diz Cássio.

Prefeitura diz fazer fiscalizações

Por meio do Psiu, vinculado à Secretaria Municipal de Subprefeituras, agentes fiscalizam ruídos em todo o Município conforme as denúncias realizadas nos canais oficiais, informa a Prefeitura. Após o recebimento da solicitação, é elaborada a programação para as vistorias nos locais. Por meio de fiscalizações, o Psiu identifica os locais que ultrapassam os limites de som e fazem a autuação. Eventualmente, caso o problema persista, há o fechamento administrativo do estabelecimento, diz a administração.

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A Prefeitura afirma que o local citado no Instituto da Previdência tem previsão de receber a fiscalização e a data não é informada para não atrapalhar o serviço. Ressalta ainda que as vistorias são no horário de movimento dos estabelecimentos. Os fiscais gravam suas medições em um tablet offline e esses dados são sincronizados no Wi-Fi.

A Polícia Militar informa que realiza a Operação “Paz e Proteção” em todo o estado, principalmente nos finais de semana, para evitar a formação dos pancadões. De janeiro a maio de 2022, a PM atendeu 30.294 chamados para esse tipo de ocorrência. No ano passado, o comando da 2ª Cia do 16º BPM/M se reuniu com moradores do Jardim Jaqueline. Ao longo de 2021, a PM realizou sete operações na região e elaborou mais de 50 relatórios de infrações administrativas, os quais foram encaminhados para a subprefeitura responsável, em razão de comércios e bares irregulares que atraem os frequentadores desses eventos.

Em relação aos eventos no Complexo Anhembi, em fiscalizações nos dias 17/06/2022 e 25/06/2022, foram constatadas a emissão de ruídos acima do permitido em lei sendo lavradas, respectivamente, a primeira e a segunda multa por descumprimento aos parâmetros de incomodidade nos termos da lei 16.402/16.

Sobre o estabelecimento situado no Campo de Marte, em fiscalizações realizadas pelo Psiu nos dias 28/05/2022 e 25/06/2022, foram constatadas a emissão de ruídos acima do permitido em lei sendo lavrados, respectivamente o termo de orientação e a primeira multa.

Concessionária do Anhembi afirma que monitora ruídos

Por sua vez, o Distrito Anhembi, responsável pela administração do local, informa que os "organizadores que alugam o espaço são responsáveis pela configuração do evento e estão cientes do volume permitido na legislação, questão extensamente tratada pela administradora com todos os organizadores.

A empresa afirma que "preza pelo uso consciente e está monitorando as propagações de ruídos acima do permitido e mantém conversas constantes com organizadores, especialistas e poder público para evitar que tais desconfortos relatados pelos moradores da região voltem a ocorrer". 

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