Quando os chefs é que põem a mão na terra

Hortas surgem em locais inesperados de São Paulo, como na região da Rebouças

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Por Valéria França
Atualização:
No campo. 'Mudei para um local mais afastado e comecei a produzir para a família e a enoteca', conta Lis Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Há um grupo de chefs paulistanos que está colocando literalmente a mão na terra para cultivar insumos que abastecem o próprio restaurante. O desafio é grande. Lidam com variáveis como pragas, qualidade do solo e sazonalidade, entre outras questões inerentes à atividade, mas desconhecidas pelos mestres das panelas. Alex Atala, Gabriel Matteuzzi, Lis Cereja e Renato Caleffi são alguns dos desbravadores da iniciativa.

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As hortas estão surgindo em locais inesperados. Quem sobe a congestionada Avenida Rebouças, sentido centro, não imagina que atrás de um dos muros, quase na altura da Alameda Tietê, tem laranjeira, goiabeira e uma pequena plantação de hortaliças de onde saem até flores comestíveis. Trata-se dos fundos do restaurante Tête à Tête - casa que ganhou a primeira estrela do Guia Michelin Rio de Janeiro & São Paulo no ano passado. 

“O trabalho do cozinheiro é artesanal. Ver crescer e sentir o cheiro que vem de cada uma das plantas se contrapõem ao processo de industrialização dos alimentos”, diz o chef Gabriel Matteuzzi, do Tête à Tête. “Trabalhar o produto do zero, aproveitando todas as suas partes, é muito diferente do que receber o alimento cortado, limpo e empacotado.”

Laboratório. A pequena plantação do Tête à Tête é um projeto-piloto que mistura técnica de horta urbana e sistema agroflorestal. “Por exemplo, em 1 metro quadrado revezamos rúcula, couve, alface e cebolinha”, diz Guilherme Vinha, sócio do restaurante. Nos demais canteiros do quintal, outras variedades estão em teste, como as flores de capuchinha, que são comestíveis (sabor picante) e altamente perecíveis. No mercado, cada flor custa R$ 1, muito se comparado a um pé de alface, que sai por R$ 1,50 (preço de atacado). “As flores nasceram, finalmente, só depois da quarta tentativa de plantio. Descobrimos que estávamos colocando muito adubo”, diz Matteuzzi. A horta vem funcionando como laboratório, que dará substrato para uma produção maior, com o objetivo também de cortar custos do restaurante. 

“Quando um chef se dispõe a ter uma horta, ele mostra o quanto está preocupado com o que vai servir”, diz o médico Mário Telles Júnior, presidente da Associação Brasileira de Sommeliers, cliente do Tête à Tête. 

Na Enoteca Saint VinSaint, localizada no bairro do Itaim-Bibi, na zona sul, a horta faz parte de uma bandeira sustentável, levantada pela chef Lis Cereja, de 33 anos. O ambiente acolhedor - paredes com tijolos aparentes revestidas de prateleiras com vinhos, mesas e cadeiras de madeira rústica - lembra o de uma adega europeia. O cardápio muda todos os dias e depende do que for colhido no dia na casa de Lis, que fica em Carapicuíba, município da região metropolitana de São Paulo. Além de frutas, verduras e hortaliças, há uma pequena criação de galinhas e quatro cabras. 

“Anteriormente, eu morava em um apartamento ao lado do restaurante. Era prático”, conta Lis. Ela teve de radicalizar para conseguir ter um restaurante com 100% de produtos naturais. “Mudei para um local mais afastado e comecei a produzir para a minha família e para a enoteca. Só então o restaurante se tornou economicamente viável.” 

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Ali, todas as sobras são reaproveitadas de alguma forma. Por exemplo, o alimento vira ração para os animais ou compostagem; o vinho, vinagre; e o pão, farinha. “A ideia é plantar uma semente na cabeça das pessoas que dá para comer melhor. O alimento não precisa vir na caixinha ou enlatado”, diz Lis, que prepara pratos exclusivos quando o cliente tem restrição alimentar. Para isso, basta apenas ligar antes e avisar.

Alex Atala é outro chef preocupado com a sustentabilidade, no que se refere a sazonalidade e aproveitamento total dos alimentos. Um de seus restaurantes, o Dalva e Dito, também tem uma horta, que recentemente foi fechada para reforma. Há pouco mais de dois meses, Atala abriu outra casa, o Bio, com o objetivo de exercitar o aproveitamento total dos alimentos, com um cardápio mais simples, onde os produtos naturais são valorizados. É o caso de uma das sobremesas, a mandiocada - feita com mandioca ralada (com raiz e casca), misturada ao arroz-doce e coco. 

Profissional. Espaço do Le Manjue, de Renato Caleffi, já está com 3 mil metros quadrados Foto: Rogerio Voltan

Cerveja. A horta mais profissional é a do Le Manjue, restaurante que funciona há sete anos na Vila Nova Conceição, na zona sul, sob o comando do chef Renato Caleffi, de 42 anos. A plantação, que começou tímida, no fundo do quintal, quando o estabelecimento era em Pinheiros, hoje tem 3 mil metros quadrados.

A expansão aconteceu quando um dos sócios da casa, Rodrigo Rivelino, de 43 anos, resolveu transformar o campo de futebol de seu sítio em Valinhos, no interior de São Paulo, em local de plantio orgânico. De lá são colhidas beterrabas, berinjelas, quatro tipos de alface, rúcula selvagem, tomilho, alecrim e capim santo - esse usado para aromatizar a cerveja artesanal e orgânica recentemente lançada pelo restaurante, a Uma. Queremos transformar as pessoas pela alimentação”, diz Rivelino. “Tentamos transmitir boas práticas para que as pessoas consumam de maneira mais adequada para a saúde. Quando se tem mais consciência, viramos seres humanos melhores.”

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