Prefeitura inicia revisão do Plano Diretor com foco na São Paulo do pós-pandemia

Discussão sobre mudanças na lei ocorre ao longo do ano; incentivar transformação de imóveis comerciais em moradia, adensar o centro e potencializar políticas ambientais estão entre prioridades da gestão Covas

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Por Priscila Mengue
Atualização:

A Prefeitura de São Paulo está com uma equipe interna e outra de professores da USP focadas em diagnosticar o que precisa ser “calibrado” no Plano Diretor para deixar a cidade encaminhada para lidar com o pós-pandemia e outras futuras epidemias. A lei, que determina as regras e os incentivos de desenvolvimento urbano, está passando por revisão ao longo deste ano para ser enviada pela gestão Bruno Covas (PSDB) para a Câmara de Vereadores até dezembro.

Ao Estadão, o secretário de Urbanismo e Licenciamento, Cesar Azevedo, disse que a revisão será pontual, para aperfeiçoar dispositivos que travaram ou não saíram do papel. “Queremos fazer uma acupuntura do Plano Diretor, pegar pontos específicos que merecem ser melhorados para torná-los mais efetivos.”

Transformações proporcionadas pelo Plano Diretor são evidentes em locais de São Paulo, como a Avenida Rebouças Foto: Alex Silva/Estadão

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Isso inclui problemas e situações que se tornaram mais evidentes com a pandemia, como o déficit habitacional, a desocupação de parte dos imóveis comerciais (especialmente de áreas centrais), a expansão lenta dos corredores de ônibus, o preparo sanitário necessário para as possíveis próximas epidemias e a sustentabilidade. O processo de revisão está dividido em cinco eixos: instrumentos de política urbana, meio ambiente, mobilidade urbana, habitação e desenvolvimento econômico e social.

Um monitoramento de técnicos da gestão municipal publicado em dezembro aponta que é preciso haver “maior enfoque de aspectos de mudanças climáticas, redução de emissão de carbono e protagonismo do desenvolvimento local”, por exemplo. “A gente precisa preparar a cidade para eventuais novas pandemias, a cidade tem que estar preparada para isso. Essa discussão não é só em São Paulo, é no mundo inteiro”, comenta o secretário.

“A pandemia torna urgente a reflexão sobre os aspectos de planejamento das cidades, além das ações para o enfrentamento imediato da doença. Ela impõe desde já aos gestores públicos a responsabilidade de repensar a dimensão urbana da crise. As questões sanitárias ganharam importância como nunca antes vimos nos debates sobre o futuro da cidade”, completa.

Em cidades como Paris, Barcelona e Buenos Aires, o planejamento urbano é um dos protagonistas das discussões sobre sustentabilidade. Isso envolve, por exemplo, a promoção da mobilidade ativa (a pé e por bicicleta) e da ideia da "cidade de 15 minutos", na qual tudo o que uma pessoa precisa pode ser encontrado a 15 minutos de onde reside.

Essa ideia de "cidade compacta" abarca a aposta no adensamento nas áreas com melhor oferta de transporte coletivo, a fim de reduzir os longos deslocamentos pela cidade, diminuir as emissões de poluentes e melhorar a qualidade de vida da população. Em grandes capitais brasileiras, como São Paulo, especialistas em planejamento urbano e meio ambiente também costumam destacar que a sustentabilidade depende da redução de desigualdades e da garantia de serviços e emprego perto da moradia.

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Tudo isso está previsto no Plano Diretor paulistano. Na prática, contudo, a gestão municipal analisa que a lei não conseguiu aumentar a população de determinadas áreas melhor estruturadas, inclusive em partes do centro, assim como ampliar a oferta de serviços e equipamentos para criar novas centralidades nos bairros.

O monitoramento da Prefeitura ressalta, por exemplo, que esses novos centros somente são possíveis com investimentos em transporte coletivo, como na implantação de corredores de ônibus, por exemplo. No documento, os técnicos avaliam, contudo, que essa expansão “caminha a passos lentos”. Da mesma forma, aponta a importância de haver uma “priorização de investimentos e ações intersetoriais nas periferias”, com regularização fundiária, melhorias de saneamento e mobilidade, ampliação de áreas verdes e entrega de equipamentos públicos.

Sobre meio ambiente, a avaliação municipal ainda elenca uma série de dispositivos do Plano Diretor que precisam sair do papel ou ganhar potência, tais como: implementação de novos parques e implantação do Fundo Municipal de Parques; criação dos Planos Municipais de Gestão de Áreas Públicas e de Recuperação Ambiental de Fundos de Vale; e transformação das áreas melhor estruturadas de transporte coletivos localizadas na várzea de rios em"corredores ambientais e ecológicos"; dentre outros

Ao Estadão, o secretário de Urbanismo garantiu que o transporte coletivo é um dos principais debates da revisão, assim como a desburocratização da conversão de uso de imóveis comerciais para residenciais, tendência que ganhou força na pandemia com a adoção do home office e consequente esvaziamento de escritórios. Entre especialistas, acredita-se que parte desses espaços permanecerão ociosos mesmo no pós-pandemia. “Temos um déficit habitacional de 474 mil famílias, por que não usar esse momento de revisão para estimular essas unidades a mudar o uso de comercial para residencial?”, argumenta Azevedo.

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Outro ponto que a Prefeitura entende haver necessidade de mudança é na “cota solidariedade”, um dispositivo que exige que todo responsável por um empreendimento com ao menos 20 mil metros quadrados de área construída computável seja obrigado a dar uma contrapartida de 10% de área para a produção de habitação de interesse social (para famílias que recebem até seis salários mínimos). Isso pode ocorrer com doação de terreno, entrega de residências ou depósito no Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb), da Prefeitura. 

A ideia é que a extensão mínima seja diminuída para 10 mil metros quadrados, pois o instrumento atingiu apenas nove empreendimentos até 2019. “É uma ferramenta revolucionária criada pelo Plano Diretor, mas que teve o seu desempenho acanhado", analisa Azevedo.

Embora aborde a necessidade de ajustes no plano, o secretário diz que as soluções e mudanças ainda estão e estarão em discussão ao longo dos próximos meses a partir de um tripé formado por indicadores levantados pela gestão municipal, diagnóstico de especialistas da USP e contribuição da sociedade civil organizada e da população em geral. “Não temos a solução para todos esses problemas. Por isso que estamos convidando todos a participarem dessa discussão.”

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A revisão do plano durante a pandemia foi criticada, gerando uma carta de mais de uma centena de associações pela defesa de um processo “democrático”.Neste ano, a participação popular será majoritariamente digital, com a possibilidade de eventos presenciais no segundo semestre, a depender das condições sanitárias, de acordo com a gestão Covas.

A justificativa da Prefeitura para a realização é um trecho do próprio Plano Diretor, que diz: “O Executivo deverá encaminhar à Câmara Municipal proposta de revisão deste Plano Diretor, a ser elaborada de forma participativa, em 2021”. A lei é válida até 2029.

Segundo o secretário, o descumprimento poderia incorrer em improbidade administrativa ou exigiria um processo de aprovação popular e legislação quase tão intenso quanto o da revisão em si - o que é refutado por críticos da revisão neste momento. “A gente não pode se esconder atrás da pandemia, cruzar os braços e deixar a coisa correr”, alega. 

Uma plataforma online com as informações sobre o processo foi lançada neste mês (no endereço planodiretorsp.prefeitura.sp.gov.br), por meio da qual está aberto o cadastro de entidades, associações e afins que queiram participar de reuniões até 11 de maio. A população em geral também poderá contribuir em outras etapas a partir do próximo mês.  De acordo com Azevedo, a perspectiva é que a pandemia estará atenuada no segundo semestre, o que permitiria a realização de eventos presenciais. Antes disso, com a ideia de atingir a população sem acesso digital, serão colocados totens, computadores e tablets em ao menos um equipamento público de cada subprefeitura, como CEUs e estações de metrô.

O cronograma prevê que a primeira proposta de revisão será publicada entre agosto e setembro. A segunda versão sairá, por sua vez, até outubro, enquanto a terceira e a quarta até novembro, a fim de que a minuta do projeto de lei esteja pronta para envio à Câmara em dezembro. Por lá, também poderão ser feitas novas audiências públicas e mudanças no texto antes de ser votado, processo que não tem obrigação de ocorrer em 2021.

A exemplo da capital paulista, outras capitais e cidades de médio porte discutem a revisão ou elaboração de novos planos diretores, como Rio, Natal, Santos, dentre outras. No fim de 2020, a nova lei no Recife gerou críticas, especialmente em relação a emendas de vereadores, enquanto projetos que alteravam o plano de Florianópolis acabaram barrados no legislativo no começo deste ano em meio a reclamações por falta de participação popular.

Área construída perto dos 'eixos de transformação', como o entorno da estação Vila Madalena, tevecrescimento de 411% em 3 anos Foto: Alex Silva/Estadão

Plano Diretor aumentou em 411% área construída perto de eixos de transporte em 3 anos; entenda o que é

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O Plano Diretor é um conjunto de regras e incentivos delimitados em uma lei municipal que norteia tanto as ações públicas quanto as privadas no ambiente urbano. A partir de objetivos e diretrizes, delimita onde e como se pode construir na cidade, envolvendo aspectos variados como altura de edificações e área construída máxima, dentre outros.

Pela lei federal 10.257/01, todos os municípios com mais de 20 mil habitantes ou de regiões metropolitanas devem ter um Plano Diretor. O atual plano de São Paulo é de 2014, na gestão Fernando Haddad (PT), elaborado após uma série de discussões públicas entre diferentes setores. Ele é válido até 2029, mas deve passar por uma revisão neste ano.

Um exemplo do impacto desse tipo de lei é que, na capital paulista, por exemplo, mais de 480 novos empreendimentos imobiliários foram entregues nos chamados Eixos de Estruturação da Transformação Urbana. Eles são áreas com grande oferta de transporte classificadas pelo último Plano Diretor, nas quais há incentivos para a ampliação da oferta de residências. 

Segundo um monitoramento da Prefeitura, esses locais tiveram um crescimento de 411% em área construída de 2017 a 2019 em relação ao triênio anterior, subindo de 293 mil metros quadrados entregues para 1,2 milhão. Os exemplos são visíveis com edifícios entregues ou em construção em locais como a Avenida Rebouças e o entorno da estação Vila Madalena, ambos na região centro-oeste, o Tatuapé e a Penha, na zona leste, e a região da Subprefeitura de Pirituba, na zona norte, dentre outros.Outro resultado do Plano Diretor foi a redução de novos apartamentos com garagem. Enquanto a lei anterior exigia um número mínimo de vagas, a atual desincentiva a criação desse tipo de espaço e até cobra o pagamento de valores extras em determinados locais, como nos Eixos de Estruturação, onde há oferta variada de transporte coletivo. Entre 2014 e 2018, por exemplo, 14 mil apartamentos foram lançados sem garagem na cidade, número que foi de 194 unidades entre 2009 e 2013. A queda se repetiu entre as unidades com uma, duas, três e mais vagas, embora o setor tenha registrado um crescimento nos lançamentos imobiliários na comparação dos dois períodos, segundo dados da Embraesp compilados pela Prefeitura.

O Plano Diretor também delimita mudanças e intervenções em pontos específicos da cidade. Em São Paulo determina, dentre outros exemplos, a desativação do tráfego de automóveis no Elevado Presidente João Goulart, o Minhocão, e a subsequente demolição ou transformação em parque.

Necessidade de revisão durante a pandemia divide especialistas

Especialistas ouvidos pelo Estadão têm opiniões distintas sobre a revisão este ano. Todos ressaltam, contudo, que a participação popular ampla precisa ser garantida pelo poder público.

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Relator do atual Plano Diretor e professor de Urbanismo da USP, Nabil Bonduki defende não haver necessidade desse processo agora e diz que a Prefeitura conseguiria aval dos vereadores para adiar. Como exemplo, cita que artigo semelhante do Plano Diretor anterior (de 2002) foi desrespeitado, havendo revisão só mais de dez anos depois, a qual resultou na lei hoje em vigor.

“Há aspectos de política urbana que precisam ser alterados, mas não têm a ver com Plano Diretor stricto sensu, têm a ver com regulamentações por lei específica.” Um exemplo que cita é a criação de uma Lei do Retrofit, a respeito da modernização de edifícios erguidos há décadas, o que pode incluir restauro de imóveis tombados e a conversão de uso de salas comerciais em apartamentos. “A lei precisa ser feita, mas não depende da revisão do Plano Diretor."

Outro ponto, diz, é a ampliação de habitação social, que, segundo ele, tem dispositivos “bastante detalhados” no plano atual. “Não tem nada nas Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social, classificadas em territórios em que há ocupação irregular, favelas, cortiços e afins) que precisaria ser mudado para poder implementar.” Ex-vereador, Bonduki teme que a revisão possa desconfigurar a lei atual. “O projeto entra na Câmara de um jeito, mas não se sabe como sai."

Já o urbanista Kazuo Nakano, professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), defende que o momento é para avaliar resultados da legislação atual, a fim de identificar explicações internas e externas para o que não obteve o retorno esperado. Para ele, a revisão sofre pressão de setores econômicos. 

“Ele (o Plano Diretor) não está criando problemas graves o suficiente no funcionamento da cidade que justifique um processo participativo que será insuficiente, que vai estar aquém do necessário”, defende. “Tirar do papel é muito mais prioritário do que fazer revisão meia-boca.”

Um exemplo que cita é impulsionar ações na área de habitação. “Tem partes do Plano Diretor que são essenciais inclusive para fortalecer a proteção da vida das pessoas, como a implementação das Zonas Especiais de Interesse Sociais, destinadas à população de baixa renda, que  sofre os piores impactos da pandemia.” Além disso, menciona a necessidade de usar recursos, como os do Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb), da Prefeitura, em melhorias no transporte coletivo, a fim de ampliar a oferta e reduzir o risco de contágio da covid-19. 

Professor de Urbanismo e coordenador do Laboratório de Projetos de Políticas Públicas da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Valter Caldana, por sua vez, é favorável à revisão em 2021 desde que não seja apressada, a fim de “respeitar as dificuldades operacionais de reuniões” na pandemia. “Adiar a revisão para começar no ano que vem não significa que as discussões setoriais segmentadas e corporativas vão deixar de acontecer”, comenta. “Não pode fazer correndo, de afogadilho, dando a impressão de que se pretende passar a boiada."

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Para ele, discutir a realização em 2021 pode ocupar um tempo útil para debates da revisão em si. Além disso, é necessário que o foco esteja nos ajustes de instrumentos que precisam de aperfeiçoamento, como regulamentações. “Não podemos nos esquecer que é uma revisão, não a elaboração de um plano novo. Não estará em discussão a estrutura, mas se deve verificar os aspectos de aplicabilidade do plano que, por ventura, não estejam tão eficientes, mas dentro dos mesmos objetivos e da mesma estrutura.”

Como exemplo, comenta a chamada “cota parte”, que define o número mínimo de unidades habitacionais por área em terrenos próximos de eixos bem servidos de transporte público, o que acabou facilitando a explosão de novos microapartamentos pela cidade. “Não está bem regulamentada. É preciso simplificar a discussão. Em vez de ficar discutindo a tese.”

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