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Por 'polícia na rua', moradores pagam até por conserto de viaturas em SP

Há também quem faça reparo em prédios da polícia e ofereça marmita; governo diz há verba específica para essas situações

Foto do author Marco Antônio Carvalho
Por Felipe Resk e Marco Antônio Carvalho
Atualização:
Rua David Pimentel. Há patrulhas três vezes por dia; proximidade com as favelas de Paraisópolis e do Parque Real tornam a via uma rota de fuga Foto: Rafael Arbex / Estadão

Foi com o espírito de "ajudar o País" que o mecânico Antônio Raimundo do Nascimento, de 40 anos, recebeu em sua oficina, na Rua Martins Fontes, no centro, uma viatura da PM que patrulha o bairro. O carro precisava de uma bateria nova e o serviço é justamente a especialidade do estabelecimento, que tem largura pouco maior que a de um carro popular. "A polícia tinha de ter como consertar porque a gente paga imposto para isso. Mas também se todo mundo cruzar os braços, nada vai para frente", diz o mecânico, que doou uma bateria de R$ 300, sem esperar retorno da promessa que ouviu dos policiais em seguida: "Se chegar uma nova no batalhão, a gente vem aqui e devolve essa". A troca ocorreu em janeiro. Desde então, Toninho, como é conhecido, nunca mais viu os agentes.

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Segundo conta, recebe com frequência policiais civis que trabalham perto e pedem uma ajuda de carga na bateria dos veículos. O serviço é feito sem grandes custos para a oficina. Perto dali, no restaurante onde Francisco Aires, de 29 anos, é gerente, também é comum ceder marmitas para os agentes mais antigos na região. "É uma parceria em que é bom tê-los por perto", afirma. "Outros, que não conhecemos, pegam, mas pagam."

Para garantir o patrulhamento nas ruas, moradores de São Paulo têm se mobilizado para pagar alimentação de agentes, consertar viaturas quebradas e até fazer reparos em prédios da polícia, em um contexto de alta de crimes patrimoniais, como roubos e furtos. O cenário se torna mais comum em meio a uma queda de 9,5% nos valores executados do orçamento previsto para custeio da Polícia Civil (de R$ 182 milhões no 1º semestre do ano passado para R$ 165 milhões neste ano) e mesmo com o crescimento das verbas para a PM, que teve R$ 371 milhões para custeio neste ano, ante R$ 334 milhões no mesmo período do ano passado.

Para Celso Neves Cavallini, presidente do Conselho de Segurança (Conseg) do Portal do Morumbi, na zona sul, é fácil explicar por que prefere mobilizar moradores a esperar que a polícia resolva por si mesma alguns problemas da corporação. "Se a gente não ajudar, nós mesmos somos prejudicados", diz. "Existe verba do Estado, mas isso demanda um tempo maior."

O mais comum, segundo o presidente do Conseg, é que moradores banquem consertos de viaturas, como troca de embreagem e bateria. "Se há um problema, eu contato um, contato outro. Vou distribuindo para não calhar em cima da mesma pessoa", conta. "A gente não deixa viatura quebrada. Mando consertar até as mais velhinhas", afirma. "Cada dia que uma delas fica fora de serviço é um ponto crítico que deixou de patrulhar."

Na Rua da David Pimentel, por exemplo, os muros altos encobrem as fachadas de casas de luxo, há seguranças particulares, cercas elétricas e câmeras apontando para todos os lados - mesmo assim, a Polícia Militar patrulha três vezes por dia. A proximidade com as favelas de Paraisópolis e do Parque Real, dizem os moradores, faz com que a via sirva de rota de fuga para assaltantes que passam, em duplas, de moto.

"Já presenciei uns três assaltos, fora o que a gente fica sabendo quando quebram o vidro de um carro ou levam a bolsa de alguém", afirma a empregada doméstica Maria Roseli Vieri, de 50 anos, que há 12 trabalha por lá e se diz assustada com a violência. "De um tempo para cá, você só vê plaquinha de 'vende-se' nas casas."

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Em um planilha com os crimes da região, no entanto, Cavallini aponta que foram dois roubos na David Pimentel em junho, ambos no dia 14. Um às 19h30, outro às 21 horas. "Eu somo os índices da capital e dividido por 93 delegacias. Em média, no primeiro semestre, foram 2.645 ocorrências na cidade", diz Cavallini, que aprova o trabalho realizado pelos comandos policiais da sua área. "No 89.º DP (Portal do Morumbi), tivemos 1.819, ou seja 31% menos", comemora. "Não estou dizendo que esteja uma maravilha, mas, no comparativo, estamos bem na fita."

Sem braços cruzados. Nascimento doou bateria em janeiro Foto: ALEX SILVA/ESTADAO

Insegurança. Os resultados do Morumbi não são regra na cidade. Dados da Secretaria da Segurança Pública (SSP) mostram que os roubos subiram 3,3% na capital no primeiro semestre, em relação ao mesmo período de 2016, com 80.724 casos.

Já os furtos registraram aumento ainda maior: 9,1%. Ao todo, foram 97.900 ocorrências. Apesar dessa escalada em São Paulo, o 89.º DP teve queda de roubo (10,3%), furto (4,4%) e furto de veículo (19,3%). Só roubo de veículos subiu (3,8%), de 103 para 107.

No centro, o 4.º DP (Consolação) teve comportamento inverso. Os roubos pularam de 1.142 para 1.630 neste ano, uma alta de 42,7%. Na mesma região, o 77.º DP (Santa Cecília) registrou aumento 25% dos assaltos, com 901 casos em 2017, ante 721 no ano passado. "Está difícil. A sociedade tem de se mobilizar para ajudar os policiais ou então a gente fica a mercê dos bandidos", afirma Francisco Machado, diretor do Conseg Santa Cecília.

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"Há um problema em comum para todas as regiões: a falta de verba de manutenção tanto para material da PM quanto de pessoal para a Polícia Civil", diz Marta Porta, que preside o Conseg Consolação. "A gente compra pneu para viatura e até troca luz quebrada nos prédios da polícia. Tira do bolso e leva."

Presidente da Associação dos Moradores e Comerciantes dos Campos Elísios, Antonio Iézio diz que chegou a pagar a um encanador para consertar o sistema hidráulico da sede da 2.ª Companhia do 13.º Batalhão da PM, na região central, recentemente. "Deu um problema no banheiro e estava tudo voltando. Então, fui lá arrumar", conta. "Mas eu tenho procurado evitar esse tipo de auxílio, para não ficar parecendo que é uma responsabilidade nossa - e não do governo."

A SSP diz, em nota, que o dispositivo foi "devidamente consertado com apoio da Sabesp".

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Secretaria diz ter verba específica para custeio

A reportagem do Estado questionou a Secretaria da Segurança Pública sobre eventuais restrições a colaborações da comunidade a equipamentos e estruturas das polícias, e sobre a eventual existência de um procedimento padrão para recebimento desses auxílios, mas não obteve resposta. Em nota, a pasta se limitou a dizer que custeio, manutenção, reformas e zeladoria das instalações e veículos da PM são realizados por meio de verba pública específica. "Os gastos são realizados ao longo do ano por meio de licitações públicas, conforme preconiza a legislação", diz a pasta.

Para exemplificar, a secretaria diz que foram emitidas 128 ordens de serviço para manutenção de viaturas da 2.ª Companhia do 16º Batalhão da PM (Morumbi). Segundo a pasta, o custo foi de R$ 97.123,71. "A PM reforça que o Conseg é importante para que o comando local receba as demandas dos moradores, reforçando o conceito de Polícia Comunitária adotado em São Paulo", afirma a nota.

Sobre o orçamento, a pasta destacou que os dados da reportagem levam em consideração contratos já celebrados (liquidados), "no entanto, não leva em conta que, no mesmo período houve elevação de 8% nos recursos empenhados pela Polícia Civil". "Vale ressaltar que já há complementação aprovada de verba de R$ 4,1 milhões para gastos consumo. Esses recursos estarão disponíveis nos próximos dias. Além disso, está em elaboração nova suplementação orçamentária para destinar mais recursos para custeio da Polícia Civil, que também serão disponibilizados em breve", completou.

Analistas divergem sobre ajudas

As ajudas da população a estruturas das polícias têm análise diversa entre especialistas em segurança pública. A divergência reside menos em torno da legalidade do comportamento e mais quanto ao que ocorre após o conserto de uma viatura, por exemplo: a polícia fica devendo um favor ao autor da doação?

O cientista político Guaracy Mingardi acredita que sim. “A Companhia, o batalhão, ficam devendo o favor, mesmo que isso que ocorra implicitamente muitas vezes. Nunca dá para atender a todas as ocorrências, então talvez haja preferências, levando a problemas no serviço como um todo”, diz. Para ele, “o Estado tem que se bancar sem favores, que implicam favores de volta”.

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Mingardi classifica como “falha grave” a prática que diz ser recorrente, com diferentes intensidades ao longo dos últimos 30 anos. “Se começa a se usar artifícios para manter a máquina, ela deixar de estar na mão do Estado e passar a estar fragmentada por aí”, diz, completando que é um “problema sério, antigo, e todo mundo finge que não vê”.

Ex-comandante da Polícia Militar paulista, o coronel Carlos Alberto Camargo diz que a ajuda fornecida pela comunidade às estruturais estatais e aos agentes é legal e bem-vinda, mas ressalta que o orçamento deveria prever a cobertura de todas as despesas e o auxílio não deve se tornar corriqueiro. “Isso não deveria ser necessário, porque deve haver orçamento para cada uma das despesas do Estado. Se ocorre pontualmente, num determinado momento, local e tipo de despesa, essa contribuição não é ilegal, é bem-vinda. Mas jamais deve ser confundida com uma verdadeira participação num processo de prevenção primária do crime”, diz.

O coronel comandou a corporação entre 1997 e 1999, anos em que foram implementadas com maior intensidade as estruturas e a mentalidade de policiamento comunitário no Estado. O oficial sustenta, então, que para além da ajuda com materiais e serviços, é importante que a comunidade se envolva na participação sobre as prioridades de policiamento para cada área. “É necessário utilizar a relação comunitária como ferramenta de prevenção à disposição do comandante de área. Devemos buscar o empoderamento da comunidade para que haja uma colaboração efetiva, com informações sobre a área, avaliação sobre a forma de abordagem e definição de prioridades. Essa é a verdadeira participação”, diz.

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