
27 de junho de 2015 | 03h00
Todas as comunidades humanas que têm acesso a sucos de vegetais ou outros líquidos que podem ser fermentados consomem bebidas alcoólicas. Bebemos com prazer porque temos uma mutação na enzima que metaboliza o etanol.
Nossa enzima é 40 vezes mais eficiente que a versão que existe em outros mamíferos. Como metabolizamos o etanol rapidamente, logo que é ingerido, ele se transforma em alimento e serve como fonte de energia para nosso corpo. Essa mesma enzima, diminuindo rapidamente a quantidade de etanol no sangue, nos obriga a ingerir mais etanol para ficarmos felizes, e facilita nossa recuperação depois de um porre. Se não tivéssemos essa mutação ficaríamos bêbados com pouco álcool e demoraríamos muito para nos recuperar. É o que ocorre com os outros animais. Para eles, o álcool não é uma fonte de energia.
Em 2014, foi descoberto que essa mutação surgiu faz ~10 milhões de anos, antes de nossa espécie se separar dos macacos. Ela surgiu em algum ancestral comum, uma espécie que deu origem ao homem e aos chimpanzés modernos. O resultado desse aparecimento precoce é que essa mesma mutação também está presente em todos os chimpanzés modernos. E aí os cientistas se perguntaram se os chimpanzés têm essa mutação, porque não se aproveitam dessa resistência ao álcool e não tomam umas biritas? E começou a busca pelos chimpanzés bebuns.
Bossou é uma pequena vila no Sul da Guiné, no ponto em que Guiné, Libéria e a Costa do Marfim se encontram. Lá os humanos (Homo sapiens) dividem o território com os chimpanzés (Pan troglodytes verus) e com uma palmeira (Raphia hookeri). Essa palmeira produz uma seiva doce que fermenta rapidamente e é consumida por chimpanzés e seres humanos. Nos últimos 17 anos, cientistas que estudam chimpanzés também passaram a habitar a região. E a se deliciar com a bebida produzida pelas palmeiras. E aí, para juntar o útil ao agradável, passaram a estudar o consumo de álcool pelos chimpanzés.
Atualmente, os humanos da região colocam vasilhas plásticas nas palmeiras para coletar a bebida. As vasilhas são colocadas entre 6 e 8 horas da manhã. O líquido é recolhido entre as 16 e as 18 horas e consumido imediatamente (ninguém é de ferro). Fora desse horário o território pertence aos chimpanzés, que defendem sua fonte de felicidade com certa agressividade. Os cientistas mediram a quantidade de álcool presente na bebida. Ela varia durante o dia, mas vai de 3% a 10%, algo um pouco inferior ao que existe em um vinho ou numa cerveja.
O interessante é que os chimpanzés rapidamente aprenderam a beber das vasilhas plásticas colocadas pelos humanos. Eles usam folhas de árvores como colheres ou esponjas. Os cientistas filmaram esses chimpanzés e descobriram que eles bebem em grupo no topo das palmeiras. Eles se servem de aproximadamente 9,7 porções por minuto, e cada porção contém aproximadamente 10 a 50 mililitros. Ou seja, eles bebem de meio copo a meio litro de líquido fermentado por minuto. Como conservadoramente o líquido fermentado contém 3% de álcool, a quantidade de álcool ingerida é da mesma ordem de magnitude da consumida por um ser humano, em um bar, no final da tarde. E o mais interessante é que os chimpanzés que gostam de beber são sempre os mesmos, eles voltam às palmeiras todos os dias com seus amigos para beber (não se sabe sobre o que eles conversam). Os chimpanzés jovens são introduzidos a esse ritual ainda na adolescência.
Nessa comunidade, os humanos montam o bar de manhã, os chimpanzés se servem durante o dia, e os humanos consomem o que sobra no final da tarde. E essas duas espécies, que têm a mesma mutação que permite que apreciem o álcool, vivem felizes e ligeiramente embriagadas no coração da África.
MAIS INFORMAÇÕES: TOOLS TO TIPPLE: ETHANOL INGESTION BY WILD CHIPANZEES USING LEAF-SPONGE. R. SOC. OPEN SCI. VOL. 2 PAG. 150150 2015
FERNANDO REINACH É BIÓLOGO
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