
28 de março de 2011 | 00h00
A casa tem duas metades iguais, com os respectivos alpendres. Na reconstituição de 1954, de Paulo Florençano, uma delas é a parte social e masculina, voltada para "fora", para a "frente" e para o "caminho", que era o rio. A outra, é a parte simbolicamente reclusa e feminina, voltada para "dentro" e para os fundos. Era o lugar da cozinha e do trabalho doméstico das mulheres. Era o lado dos quartos das mulheres solteiras da família. Constituía grave ofensa um estranho acessar a casa por esse lado. Ainda é assim nos ermos e lonjuras do Brasil.
Na parte da frente, ficava a sala de eventual recepção dos de fora, mas convidados, os estranhos à família, mesmo hóspedes, a cuja presença as mulheres não compareciam. De um lado do alpendre da frente, a capela, aberta aos de fora e aos escravos; lateralmente aberta para o cômodo vizinho, de dentro, de onde as mulheres acompanhavam a reza. No lado oposto, o quarto liminar de hóspedes, sem comunicação com o interior da casa. A Casa do Bandeirante é um documento arquitetônico da sociedade centrada na família, voltada para dentro e oculta ao olhar perigoso dos de fora.
Outra face. No outro extremo da Região Metropolitana, em Paranapiacaba, num alto, está a casa que foi do chefe dos engenheiros da São Paulo Railway, de onde se tem vista da vila e do pátio de manobras. A vila era lugar de apoio para a descida e subida da serra pelos trens da ferrovia. As casas operárias foram concebidas segundo os valores da indústria e do trabalho livre e assalariado, os trabalhadores sujeitos a controle e vigilância, não mais os da chibata, mas os do olhar. Eram casas voltadas para fora. As pessoas tinham de ser vistas para serem controladas. Segundo o arquiteto Marco Antonio Perrone Santos, a construção da vila seguiu os princípios do Panopticon, o modelo das prisões europeias a partir do século 18. A vigilância era possível pela intensa visualidade do morador. No medo de ser visto em transgressão, cada um internalizava um feitor imaginário e vigiava a si mesmo. Ser visto implicava mais em fingir do que em obedecer. Uma sociedade moderna, teatral, do fingimento público e da autenticidade privada.
É nessa polarização dos tipos de habitação que se pode compreender o advento da modernidade no Brasil e a radical transformação das mentalidades, no perecimento da família patriarcal e no nascimento social do indivíduo.
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