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O dia em que tudo não terminou

Por HUMBERTO WERNECK
Atualização:

É, pelo visto o mundo não acabou (pelo menos não aqui em Perdizes, onde vivo). Não é a primeira vez que isto não acontece. Você se lembra daquele 11 de agosto em que, sob a forma de um bólido sideral, que nem no filme Melancolia, a pata justiceira de Jeová viria nos aplastrar, pondo fim a nossas pecaminosas existências? Até que a gente merecia, mas dava para desconfiar de que se tratava de rebate falso: já se viu alguma coisa acabar num 11 de agosto? Que eu saiba, é o contrário, é data de começar. Foi num 11 de agosto, aliás, no ano 3.114 a.C., que entrou em vigência o calendário maia - o mesmo que anunciou para este 21 de dezembro o aniquilamento de tudo e todos. Estava meio na cara que aquela predição ia gorar, mas o Samuel e a mulher dele, a Suely, acreditaram que era pra valer. (Já contei isso, mas conto de novo, pois não tenho a pretensão de achar que você me lê). Levaram a coisa a sério e, uns meses antes do global deadline, na maior moita, pararam de pegar encomendas na marcenaria deles. Corretíssimos, quitaram as dívidas. Não renovaram a matrícula dos filhos na escola. Por fim, trajados para a ocasião, sentaram-se à espera de que o Criador os viesse descriar. Quando viram, já era 12 de agosto e o mundo aí, firme. O que acabou foi o casamento deles, porque a Suely, decepcionada com o não-apocalipse, surtou feio, por pouco não levando com ela o Samuel. Ainda bem que não, pois conto com ele para que me faça umas prateleiras.O fiasco de 21 de dezembro deixa claro que já não se pode confiar em ninguém. Nem nos maias, com sua milenar sabedoria; que dirá nos astecas, sumérios, godos, visigodos e outros engodos. Imagino que muita gente, sem chegar ao extremo da Suely, deve se sentir frustrada. A começar pelo Papai Noel: se dispensou os cervídeos que puxam seu trenó, dando por cancelado o delivery, o rubicundo estafeta pode estar agora às voltas com, perdoe, problemas renais. O tal bando de loucos terá tempo para esticar as comemorações, mas precisará se conformar com o fato de que seu time é apenas o mais recente, não o último campeão do mundo. Empoleiradas na oposição, aves de bico longo terão que admitir: ainda não foi desta vez que se traçou, en su tinta ou não, o adversário capaz de eleger postes. Desapontamento, também, de quem apostou no fim do mundo como único recurso para escanhoar na face da República o mais renitente dos bigodes, o de Sarney, claro. Paulo Maluf talvez tenha sentido alívio - nunca mais essa conversa desagradável de supostos milhões exilados em ilhas remotas! -, até que o alvorecer de 22 de dezembro lhe devolvesse motivos para franzir outra vez o reflorestado couro cabeludo. Idem o pessoal que passou cheques pré-datados para o pós-21. Para não falar nos condenados do mensalão, se, confiantes nos maias, chegaram a antever suas penas diluídas numa condenação de todos, Joaquim Barbosa inclusive, por força da insondável dosimetria do Senhor.Mas certamente houve também quem se rejubilasse ao constatar que a hecatombe não se produziu. Minha amiga Denize, por exemplo, que já dera cabo de várias dezenas de tons de cinza, só interrompendo a leitura quando fora do livro a coisa ameaçou ficar preta, poderá deleitar-se com quantos mais houver. Feliz está também o moço que, tendo pedido a mão da moça, chegou a crer que não teria a chance de levar o resto.Eu próprio respirei ao saber que, ao menos por ora, está mantido meu april in Paris. Confesso, porém, que lamentei ver adiado uma vez mais o espetáculo da Ressurreição dos Mortos - que ainda espero poder presenciar, de preferência vivo, no Cemitério da Consolação: já pensou aquela profusão de ex-grã-finos emergindo de seus mausoléus com trajes de época, para engrossar um multitudinário desfile Walking Dead? Avôs de 32 anos sendo apresentados a netos de quase 100. Mário e Oswald de Andrade, rompidos desde 1929, finalmente reconciliados, sem verborragia nem antropofagia.E agora, pessoal, já pro shopping! Vocês acharam que iam escapar do inferno das compras natalinas?

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