No Cemitério do Santíssimo

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Por José de Souza Martins
Atualização:

De repente, o resumo da tragédia estava ali na minha frente, no túmulo de granito rosa, medalhões de porcelana com os retratos solenes das personagens que nele repousam. Fazia tempo que eu queria voltar ao pequeno Cemitério do Santíssimo Sacramento, na esquina da Avenida Doutor Arnaldo com a Rua Cardoso de Almeida, num canto do Cemitério do Araçá. É um cemitério da Irmandade de São Pedro dos Clérigos. Várias congregações religiosas têm ali seus túmulos comunitários, de padres e freiras. Inaugurado em 1899, criado por iniciativa do Conde José Vicente de Azevedo, patrono de muitas obras pias na cidade de São Paulo, representava, também, a aspiração de muitos leigos devotos de ter sepultura em solo sagrado, o que já não ocorria nos cemitérios públicos, que se tornaram laicos com a Constituição republicana de 1891 e a separação do Estado em relação à Igreja. Para muitos brasileiros de fé, o cemitério público profanava o passo da eternidade, maculava o arrependimento pelos pecados, perturbava o tenebroso transe, anulava orações e penitências. O cemitério católico era um modo de assegurar que no Dia do Juízo, quando ovelhas e bodes fossem apartados pelo Criador, as ovelhas já estariam recolhidas ao redil do sagrado, no antegozo da salvação. Foi uma surpresa ver ali, no sereno silêncio de terra consagrada, o túmulo de Dilermando de Assis, o homem em cujas mãos estava a arma de que saiu o tiro que, em 1909, pôs fim à vida de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos: Euclides da Cunha. Fora um duelo passional. Também foi sepultado ali seu irmão, Dinorá, esportista, atingido na coluna por um tiro de Euclides nessa ocasião. Ficou paralítico e acabou se matando. A mulher de Euclides mantinha um caso com Dilermando, militar como ele, e com os filhos acabara de abandonar o marido para viver com o amante. Na troca de tiros, Euclides morreu. Fora lavar a honra. Sabia o que estava acontecendo em sua casa, que dois dos filhos nem eram seus. Provavelmente, intuía que morreria no confronto: Dilermando era o melhor atirador do Exército. Tempos depois, um de seus filhos tentaria vingar sua morte. Também morreria no confronto. Dilermando seria absolvido das mortes a que fora levado. Carregaria pela vida afora a pesada cruz do destino. Morreria em São Paulo, já general, onde se radicara após encerrar a carreira militar. Apesar de ter naquele cemitério um túmulo de família, seu sepultamento foi vetado pela Irmandade que o administra. Só muitos anos mais tarde seus restos foram para lá transferidos. Ele se separou da viúva de Euclides, com quem se casara, após cuja morte se casou com sua segunda companheira. Desse casamento, teve uma filha, Dirce de Assis Cavalcanti, cujo livro O Pai (Ateliê Editorial) é um tocante poema biográfico.

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