
12 de agosto de 2012 | 03h04
Eu não estava lá, 45 anos mais tarde, no momento em que ele morreu, deixando-me, também a mim, integralmente órfão, e já iam bem longe os meus próprios 44. A sua voz se havia transformado em sussurros cada vez menos audíveis, ele que gostava tanto de falar, e pouco antes de calar-se em definitivo fez saber, no que talvez tenham sido suas últimas palavras: "Estou no mato sem cachorro".
Posso imaginar o quanto deve ter custado àquele fazedor saber que estava num beco sem saída. Pois não era homem de entregar os pontos. Me lembro dele, por exemplo, a pelejar por uma causa que na minha adolescência me soava quixotesca, ao ponto de sentir constrangimento ao ver meu velho naquele papel. As mineradoras - insistia ele ao menor pretexto, ou sem pretexto algum, no papo, nas palestras, em escritos e entrevistas que ia oferecer aos jornais - estavam aniquilando as matas que, no outro lado da Serra do Curral, o paredão que emoldura a capital mineira, garantiam a sobrevivência dos mananciais de água da cidade.
A certa altura me mandei, e foram anos sem botar os pés na minha cidade. Ao revisitá-la, topei com um onipresente adesivo nos automóveis: "Olhe bem para as montanhas". Mas já era tarde. Olhar para as montanhas, agora, era constatar o desastre: não só as matas como o próprio perfil da Serra do Curral haviam sido roídos pela glutonaria férrea das mineradoras.
Ambientalista quando ainda não se usava a palavra, meu pai dedicou boa parte de seu tempo a outra empreitada quixotesca, tema de uma crônica em que o chamei de O Espalhador de Passarinhos: sem alarde, capturava aves onde fossem abundantes, para soltá-las onde houvessem escasseado ou desaparecido. Vivia às turras com o Ibama, que burramente via nele um mercador de pássaros. O mesmo Ibama que anos mais tarde criaria um Prêmio Hugo Werneck para estimular o repovoamento de aves.
Em nossas longas décadas de convívio, nem sempre nos entendemos, e muitas vezes francamente nos desentendemos. Inalcançável, aquele ex-campeão de basquete que nunca fumou nem bebeu, que acordava cedo e tomava banho frio, que se casou com a primeira namorada e com ela viveu por mais de meio século. Jovem, ele era duro, era brusco, felizmente sem violência física. Não se inventou assim, por certo: vinha de troncos ásperos a que faltavam os musgos do carinho. Mas o tempo lhe foi trazendo doçura e flexibilidade. Num percurso bem pouco encontradiço, meu pai envelheceu para a esquerda, se me faço entender, pois não falo aqui de política: nos machos, sobretudo, a ferrugem da velhice costuma acentuar a intolerância e o conservadorismo, mas com papai foi diferente. Ele ganhou veludos.
Com minha própria quota de intolerância juvenil, eu não podia vê-lo assim - até o dia em que, por encomenda de uma revista, escrevi aquele texto, O Espalhador de Passarinhos, para em seguida me dar conta de algo inesperado: embora não tivessem sido esquecidos, nossos contenciosos se haviam desarmado; ainda bem que não cheguei a derramar sobre meu pai um picles verbal que por anos deixara acidular.
Não houve o tribunal que eu programara, nem aquele texto não premeditado operou algum milagre. Minha surpresa foi a de quem não percebera que também havia caminhado para a compreensão. E não deveria me espantar: não é assim, escrevendo, que um escritor, mesmo sem o saber, pode encarar e resolver suas mais fundas questões?
Me faz uma falta danada, aquele camarada.
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