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Mario Bortolotto e violência: uma falsa associação

Título do blog 'Atire no dramaturgo' é homenagem ao livro 'Atire no Pianista', de David Goodis

Por Beth Néspoli
Atualização:

Mario Bortolotto vem reagindo e, ao que tudo indica, em breve vai poder falar do assalto que quase lhe tirou a vida. Talvez não tenha muito a acrescentar sobre o incidente, mas poderá desfazer a relação entre sua obra e a violência, preocupação evidente de seus amigos que pode ser detectada em vários textos veiculados pela Internet.

 

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A inquietação mais intensa diz respeito ao equívoco envolvendo o nome do blog de Bortolotto, intitulado Atire no Dramaturgo. Muitos se preocuparam em esclarecer a origem desse batismo, homenagem ao livro Atire no Pianista, do David Goodis. Trata-se de um romance policial que, por sua vez, remete ao cartaz NÃO ATIRE NO PIANISTA que podia ser lido nos saloons do Velho Oeste.

 

Outra fonte de equívoco talvez tenha vindo das imagens publicadas no blog de Bortolotto da peça Brutal, em cartaz no Espaço dos Parlapatões na madrugada do assalto. Sobretudo uma imagem, respingada de sangue, da atriz Maria Manoella. Mulher do ilustrador Carcarah, que também foi baleado, ela enfatiza: "a peça é um manifesto contra a violência."

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Ainda assim, o tom de Brutal é quase exceção na vasta obra desse dramaturgo. Os personagens de Bortolotto costumam portar mais copos do que armas; há mais outsiders do que bandidos. Editadas, são 19 peças, em três livros de coletâneas. Quem se der o trabalho de ler verá que mesmo os bandidos, em sua maioria, como no velho oeste, orgulham-se de um código de honra no qual não cabe o ataque covarde.

 

Há quem compare Bortolotto ao Plínio Marcos, mas se há algo em comum, é apenas a compaixão pelo ser humano desgarrado. E só. São universos diferentes. Os personagens de Plínio Marcos lutam para se integrar. Gostariam de ter família, casa e carro, mas têm um impedimento de origem: a pobreza extrema. Por isso são trágicos, nascem marcados por um destino imutável. Querô, filho de uma prostituta que se matara tomando querosene e é criado num bordel, não pode conquistar nada na vida. Seu meio ambiente e seus recursos não permitem, ainda que ele tente.

 

Já os protagonistas de Bortolotto tornam-se marginais - no sentido de estar à margem, na periferia do sistema econômico - por conta de sua escala de valores. Eles recusam a ideia da conquista de um carro 4x4, roupas de grife, casa na praia e celular último modelo como sinônimo de sucesso. São marginais porque preferem a liberdade de não produzir em série numa esteira industrial, coisa antiga, ou de "serem produzidos em série", expressão talvez mais pertinente ao jovem trabalhador na atual sociedade de consumo digital. Uma dramaturgia assim nada tem a ver com o estímulo à violência, pelo contrário. Hoje em dia mata-se e morre-se por um "vai passando o celular" como disse o assaltante que atirou em Bortolotto, no testemunho de seu amigo Carcarah, também baleado. E Bortolotto, que não dá a mínima por um celular, reagiu, provavelmente pelos amigos.

 

Fiel ao que prega, ele não tem muitos bens materiais, apenas uma quitinete no centro da cidade, comprada com os direitos autorais pagos pelo ator Raul Cortez por duas de suas peças, seus livros e sua obra, essa última um bem 'apenas' simbólico, imaterial. Tem muitos amigos e de boa cepa. "Cuidado com a vaidade da dor", foi uma frase ouvida pela reportagem do Estado no sábado, na Santa Casa de Misericórdia. Havia ali um acordo tácito de não se gravar entrevistas para a televisão. Assim, evitou-se o espetáculo da comiseração e da solidariedade forçada. Carcarah, ilustrador, autor dos desenhos de capa de dois livros de Bortolotto, um deles Atire no Dramaturgo, compilação de textos do blog, hesitou em dar entrevista ao Estado depois de ter alta do hospital. "Pode dar a impressão de que estou querendo aparecer. Quem tem de falar é ele, quando estiver bom." Bortolotto pode não ter muito a esclarecer, mas vai saber que os valores de seu teatro têm ressonância. No mínimo, entre seus amigos, que não são poucos.

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