22 de maio de 2022 | 05h00
Reavivada e distribuída para uma nova geração através das plataformas de streaming e aplicativos, a cultura popular japonesa tem impulsionado uma busca maior de crianças e, consequentemente, seus pais e responsáveis pelo bairro da Liberdade, na região central de São Paulo. Na maior colônia do Japão fora do país asiático, é cada vez mais comum ver os Otakus, jovens fantasiados, com capas, bonés e rostos pintados, caminhando lado a lado com o fluxo natural de turistas e visitantes do bairro tradicional.
Por definição, os otakus são pessoas que apreciam a cultura japonesa, principalmente fãs de animes e mangás. A origem da palavra pode significar, no japonês tradicional, “a tua casa” ou a segunda pessoa do singular (tu). A partir da década de 1980, o termo se transformou em gíria que mantém o mesmo significado até hoje. A princípio, chamar alguém de “otaku” podia ser visto como pejorativo, mas com o passar do tempo ele passou a ser acolhido e utilizado entre a própria comunidade de admiradores dos desenhos.
Nas imediações da praça central do bairro, pelas ruas que cercam a praça do metrô, é possível encontrar basicamente qualquer produto de cultura japonesa que se possa imaginar e que atraia os otakus. Dos refrigerantes e salgadinhos que aparecem nos desenhos às próprias revistas (chamadas mangás) e roupas. Os animes mais populares, como Naruto, Pokémon e a nova febre do Demon Slayer, ganham as ruas, literalmente, e têm seus personagens estampados em camisetas, máscaras, capas, chaveiros, miniaturas, lancheiras, materiais escolares e bandeiras que apesar de não oficiais, conquistam a garotada, principalmente as crianças.
Aos 12 anos, Sophia de Arruda conta que começou a maratonar os animes na Netflix pouco antes da pandemia, mesmo que já tivesse observado a paixão do irmão mais velho, Tomas, hoje com 29 anos. A mãe, Marcia Raf, de 50 anos, saiu cedo de Itapecerica da Serra, onde moram, e levou a filha à região não para fazer ou visitar algo específico, mas porque reconhece que o bairro é o “point das coisas de cultura japonesa”.
“Eu confesso que assisto algumas coisas, principalmente os filmes, mas na minha época era mais popular e eu gostava mais da Safiri”, conta Márcia sobre o mangá transformado em anime A Princesa e o Cavaleiro, exibido inicialmente em 1967, no Japão. O apreço pela cultura japonesa, lembra, sempre esteve na família e nos cinco filhos, principalmente no segundo, que costumava assistir a clássicos como Pokémon e Digimon e, mais tarde, passou o gosto e a coleção de mangás para Sophia, a caçula.
“Ele ainda gosta também”, conta Sophia. Naquela tarde de sábado, foi ela quem puxou os parentes para a Liberdade, mas isso não quer dizer que o restante do grupo também não tenha se divertido. Bater perna na Liberdade, especialmente aos fins de semana, é um programa que tem ocupado mais e mais as agendas sociais das famílias paulistanas, unindo o apreço dos mais jovens pela cultura popular japonesa à grande e variada oferta gastronômica da região.
Foi assim também para Anne Galvão, professora de educação física de 36 anos que passeava pela Liberdade no último sábado com a filha Caroline Tedeschi, que completa 15 anos nesta semana. Elas saíram cedo de Salto, no interior do Estado, em busca do presente pedido pela adolescente: peças para o seu primeiro cosplay completo, preferencialmente inspirado em algum personagem de Demon Slayer, a nova febre japonesa dessa geração.
Caroline mergulhou no universo de animes ao longo do isolamento imposto pelo coronavírus quando se encantou por uma música de Dragon Ball encontrada na aba de sugestões do Youtube. Popular na virada do milênio, o anime continuou produzindo novas temporadas, filmes e personagens desde então e fez que a adolescente quisesse se aprofundar ainda mais no universo dos desenhos japoneses, consumindo hoje títulos clássicos e outros mais recentes.
“Na minha escola tem muita gente que também curte [animes], tanto da minha sala quanto de outras séries. É bem popular”, conta Caroline, que também varia entre apps no celular e plataformas online para assistir aos títulos novos (veja mais no box abaixo/ao lado).
Enquanto esperava mesa para um restaurante na rua dos Estudantes, Klaus Santos, de 20 anos, contava com a companhia do irmão caçula Luiz, de 11, e da mãe. O jovem estava na fila com uma peruca preta de fios longos e o rosto completamente maquiado em uma pintura um pouco macabra, que aumentava as olheiras e a lateral dos lábios sugerindo que eles estivessem rasgados. A inspiração para o cosplay era um personagem do anime Boku No Hero, com quem ele diz dividir uma história de vida parecida, e já causava impressão no caçula.
“Eu ainda não fiz [o cosplay], mas estou planejando fazer”, promete Luiz. Klaus conta que também herdou essa paixão do irmão mais velho, hoje com 35 anos, enquanto a mãe balança a cabeça no fundo e concorda, lembrando que o primogênito também pedia DVDs e fitas VHS de animes daquela época.
“Aquela época” é antes de o streaming e a internet banda larga aumentarem consideravelmente o acesso a animes, que explodiu com a recente popularização de aplicativos e plataformas online, como o Crunchyroll e o Goyabu, onde é possível encontrar milhares de títulos legendados ou dublados em português. Os fãs de então precisavam se contentar com o que era exibido na TV ou, em último caso, ir atrás de alguma fita/DVD pirata O que ficou daquela geração, em termos de gosto e itens colecionáveis, acabou infectando a atual, hoje capaz de expandir esse horizonte em mídias, roupas ou itens colecionáveis na velocidade de um clique.
Como mostrou o Estadão, a América Latina representa 16% do consumo de todo o mercado de animes, cuja projeção é de render até 48 bilhões de dólares nos próximos seis anos. A própria Grand View Research, responsável pelo levantamento, aponta que um dos principais motivos por trás desse crescimento é a digitalização de títulos, gráficos ou audiovisuais, que até então estavam disponíveis apenas em mídia analógicas.
Mais do que influenciar o consumo puro desses itens, o aumento na oferta de animes tem impactado também a rotina de famílias paulistanas. Na Magic Box, uma das muitas lojas do Shopping Sogo (confira o roteiro completo abaixo/ao lado) especializadas nesse nicho, os funcionários também são admiradores e contam já ter ultrapassado a marca de centenas de animes assistidos.
Entre Laura Correa, de 17 anos, Bárbara de Freitas, de 20, Denis Antuniolo e Nathalia Gomes, ambos de 23, o valor investido para uma fantasia de cosplay pode variar entre R$ 200 e R$ 400, mas a maioria deles tem mais de uma opção para escolher no guarda-roupa. Há também a opção de comprar itens de segunda mão online, em plataformas como o Shopee e o AliExpress.
“Comecei vendo o meu irmão assistir aos DVDs de Pokemón ou Digimon na TV. Apesar de não assistirmos juntos, tive muito essa influência dele”, conta Nathalia. Para ela e os amigos, o trabalho é uma forma de unir o gosto à necessidade, juntar um trocado e investir em novas fantasias.
Com apenas 17 anos, Enrico Leonardi também trabalha uniu a paixão ao trabalho e fica em frente às galerias da Liberdade enquanto tenta atrair clientes vestido como um personagem de Jujutsu Kaisen. “Eu uso o dinheiro pra ajudar em casa, mas também pra comprar novas fantasias (de cosplay)”, admite.
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