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Leia artigo de Luiz Gama publicado há mais de 140 anos nas páginas do Estadão

Texto é datado de 18 de dezembro de 1880, menos de dois anos antes da morte do escritor, advogado, jornalista, abolicionista e figura política influente

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Por Priscila Mengue
Atualização:

A pesquisadora Lígia Fonseca Ferreira indicou ao Estadão um dos artigos mais marcantes escritos por Luiz Gama e publicados nas páginas do jornal, então chamado de A Província de S. Paulo. O texto é datado de 18 de dezembro de 1880, menos de dois anos antes da morte do escritor, advogado, jornalista, abolicionista e figura política influente, nome essencial da história brasileira e que passa por um momento de revalorização.

Homenageado em monumento no Largo do Arouche, Luiz Gama está em momento de revalorização Foto: Alex Silva/Estadão

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“É uma análise racional e, também, cheia de ironia. Ele era super reconhecido naquele momento", descreve. O artigo também integra o livro “Lições de Resistência - Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro” (de 2020, da Edições Sesc SP), organizado por Lígia.

Leia o texto abaixo e confira a versão impressa neste link, no Acervo Estadão:

Carta a Ferreira de Menezes

Meu caro Menezes,

Estou em a nossa pitoresca choupana do Brás, sob ramas verdejantes de frondosas figueiras, vergadas sob o peso de vistosos frutos, cercado de flores olorosas, no mesmo lugar onde, no começo deste ano, como árabes felizes, passamos horas festivas, entre sorrisos inocentes, para desculpar ou esquecer humanas impurezas.

Daqui, a despeito das melhoras que experimento, ainda pouco saio à tarde, para não contrariar as prescrições do meu escrupuloso médico e excelente amigo, Dr. Jaime Serva.

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Descanso dos labores e elucubrações da manhã, e preparo o espírito para as lutas do dia seguinte.

Este mundo é uma mitologia perfeita: o homem é o eterno Sísifo.

Acabo de ler na Gazeta do Povo, o martirológio sublime dos quatro Espártacos que mataram o infeliz filho do fazendeiro Valeriano José do Vale.

É uma imitação de maior vulto da tremenda hecatombe, que aqui se presenciou na heroica, a fidelíssima, a jesuítica cidade de Itu, e que foi justificada pela eloquente palavra do exmo. sr. dr. Leite de Morais, deputado provincial e professor considerado de nossa faculdade jurídica.

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Há cenas de tanta grandeza, ou de tanta miséria, que por completas em seu gênero, não se descrevem; o mundo e o átomo por si mesmos se definem; assim, o crime e a virtude guardam a mesma proporção; assim, o escravo que mata o senhor, que cumpre uma prescrição inevitável de direito natural, e o povo indigno, que assassina heróis, jamais se confundirão.

Eu, que invejo com profundo sentimento estes quatro apóstolos do dever, morreria de nojo, por torpeza, achar-me entre essa horda inqualificável de assassinos.

Sim! Milhões de homens livres, nascidos como feras ou como anjos, nas fúlgidas areias da África, roubados, escravizados, azorragados, mutilados, arrastados neste país clássico da sagrada liberdade, assassinados impunemente, sem direitos, sem família, sem pátria, sem religião, vendidos como bestas, espoliados em seu trabalho, transformados em máquinas, condenados à luta de todas as horas e de todos os dias, de todos os momentos, em proveito de especuladores cínicos, de ladrões impudicos, de salteadores sem nome; que tudo isso sofreram e sofrem, em face de uma sociedade opulenta, do mais sábio dos monarcas, à luz divina da santa religião católica, apostólica, romana, diante do mais generoso e mais interessado dos povos; que recebiam uma carabina envolvida em uma carta de alforria, com a obrigação de se fazerem matar à fome, à sede e à bala nos esteiros paraguaios e que nos leitos dos hospitais morriam, volvendo os olhos ao território brasileiro, os que, nos campos de batalha, caíam, saudando risonhos o glorioso pavilhão da terra de seus filhos; estas vítimas que, com seu sangue, com seu trabalho, com sua jactura, com sua própria miséria constituíram a grandeza desta nação, jamais encontraram quem, dirigindo um movimento espontâneo, desinteressado, supremo, lhes quebrasse os grilhões do cativeiro!...

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Quando, porém, por uma força invencível, por um ímpeto indomável, por um movimento soberano do instinto revoltado, levantam-se, como a razão, e matam o senhor, como Lusbel mataria Deus, são metidos no cárcere; e aí, a virtude exaspera-se, a piedade contrai-se, a liberdade confrange-se, a indignação referve, o patriotismo arma-se: trezentos cidadãos congregam-se, ajustam-se, marcham direitos ao cárcere: e aí (oh! é preciso que o mundo inteiro aplauda) a faca, o pau, a enxada, o machado, matam valentemente a quatro homens; menos ainda, a quatro negros; ou, ainda menos, a quatro escravos manietados numa prisão.

Não! Nunca! Sublimaram-se, pelo martírio, em uma só apoteose, quatro entidades imortais!

Quê! Horrorizam-se os assassinos de que quatro escravos matassem seu Senhor! Tremem porque eles, depois de lutuosa cena, se fossem apresentar à autoridade?

Miseráveis; ignoram que mais glorioso é morrer livre numa forca, ou dilacerado pelos cães na praça pública, do que banquetear-se com os Neros na escravidão.

Sim! Já que a quadra é dos acontecimentos; já que as cenas de horror estão na moda; e que os nobilíssimos corações estão em boa maré de exemplares vinditas, leiam mais esta:

Foi no município de Limeira; o fato deu-se há dois anos.

Um rico e distinto fazendeiro tinha um crioulo do norte, esbelto, moço, bem parecido, forte, ativo, que nutria o vício de detestar o cativeiro: em três meses fez dez fugidas!

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Em cada volta sofria um rigoroso castigo, incentivo para nova fuga.

[A] mania era péssima, o vício contagioso e perigosíssima a imitação.

Era indeclinável um pronto e edificante castigo.

Era a décima fugida, e dez são também os mandamentos da lei de Deus, um dos quais, o mais filosófico e mais salutar é castigar os que erram.

O escravo foi amarrado, foi despido, foi conduzido no seio do cafezal, entre o bando mudo, escuro, taciturno dos aterrados parceiros; um Cristo negro, que se ia sacrificar pelos irmãos de todas as cores.

Fizeram-no deitar; e cortaram-no, a chicote, por todas as partes do corpo; o negro transformou-se em Lázaro, o que era preto se tornou vermelho.

Envolveram-no em trapos...

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Irrigaram-no de querosene, deitaram-lhe fogo... Auto-de-fé agrário!...

Foi o restabelecimento da Inquisição, foi o renovamento do touro de Fálaris, com a dispensa do simulacro de bronze, foi a figura das candeias vivas dos jardins romanos: davam-se, porém, aqui duas diferenças: a iluminação fazia-se em pleno dia; o combustor não estava de pé, empalado, estava decúbito; tinha por leito o chão, de que saíra e para o qual ia volver em cinzas.

Isto tudo consta de um auto, de um processo formal; está arquivado em cartório, enquanto o seu autor, rico, livre, poderoso, respeitado, entre sinceras homenagens, passeia ufano por entre os seus iguais.

Dirão que é justiça de salteadores?

Eu limito-me a dizer que é digna dos nobres ituanos, dos limeirenses e dos habitantes de Entre-Rios.

Estes quatro negros, espicaçados pelo povo, ou por uma aluvião de abutres, não eram quatro homens, eram quatro ideias, quatro luzes, quatro astros; em uma convulsão sidérea desfizeram-se, pulverizaram-se, formaram uma nebulosa.

Nas épocas por vir, os sábios astrônomos, os Aragos do futuro hão de notá-los entre os planetas: os sóis produzem mundos.

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Teu Luiz.

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