PUBLICIDADE

Lá vem o sol. E a rua vai se transformar

As luzes da manhã são acesas aos poucos. Quando tudo estiver claro, um pelotão tomará o lugar dos moradores de rua

Por Bruna Fioreti e do Jornal da Tarde
Atualização:

A Rua São Bento é um corredor vazio e úmido às 5 horas da manhã. O aglomerado de prédios antigos barra a já parca claridade que o céu esboça no início da transição do marinho ao turquesa. Os ecos de passos distantes são os únicos sons a perturbar o sono dos moradores de rua, encolhidos por causa do vento da madrugada. Quem passa, passa devagar.

 

PUBLICIDADE

Quase ninguém fica para sentir a insegurança que o centro de São Paulo inspira neste horário. Está escuro. O coração da cidade que não dorme desfruta de um cochilo sobressaltado pelos poucos errantes que se aventuram no miolo da Praça do Patriarca. Figuras que chegam como se viessem do nada, e somem como vultos no labirinto dos calçadões. Gente que se multiplica. Porque ali, onde a Rua São Bento cruza com a Rua Direita, a manhã chega antes do sol.

 

A curiosidade em torno do mendigo recostado na estátua de José Bonifácio dura pouco, depois das 6 horas. Ainda na penumbra, a mulher solitária, o adolescente cambaleante, o senhor de mochila nas costas, todos espiam o rosto por trás do cobertor imundo e das pernas inquietas. Meia hora depois, o morador de rua deixa de atrair olhares. A via está desperta quando ele acorda com o sino da igreja de Santo Antônio, às 7 horas. Daí em diante, a claridade vai ofuscá-lo.

 

Os raios do sol crescem sobre os prédios da Rua Direita e iluminam a São Bento, já com menos umidade e mais gente. A luz que parece acelerar os passos da calçada vem orquestrada com o ronco dos carros e o burburinho em direção ao Vale do Anhangabaú. O senhor de farto bigode prega profecias. "Vão todos morrer de cachaça", solta, indócil, neste que é o palanque predileto dos insanos. Agora sim a esquina da Direita com a São Bento virou São Paulo.

 

O pessoal da limpeza já varreu os resquícios da noite anterior. Os jatos do caminhão-pipa desacomodam a senhora que pede esmola na igrejinha. Acordados pela água, os moradores de rua perambulam com copos nas mãos em busca de café. O centro está limpo.

 

Até então imóveis em frente às lojas fechadas, os trabalhadores da região abrem as portas assim que encontram os colegas. Alguns dispensam o ‘bom dia’ e se voltam para os portões. Outros usam a ocasião para relatar causos do dia anterior, questionar a promoção do colega, maldizer o porteiro que se atrasa porque bebe. Não são nem 7h30, mas é como se o horário comercial tivesse começado.

 

A esquina agora passa em branco por quem a percorre. Obstinadas como zumbis, as pessoas não pisam em falso, não olham para trás nem para o lado. Algumas balbuciam pensamentos, displicentes. Voltar a atenção ao outro seria quebrar o torpor matinal, minar a resistência à jornada que se segue. Manifestações de alegria são recebidas como afrontas. Daí os olhares rabugentos que condenam o jovem de camiseta cor-de-rosa que cantarola a música ouvida pelo celular no viva-voz.

Publicidade

 

Só dona Maria do Socorro, a tia da fruta, consegue parar os apressados. Há 12 anos com suas bananas e uvas, ela fecha o cruzamento e arranca os raros sorrisos que se vê nos arredores. Mas, com medo da fiscalização da Prefeitura, a tia e os compradores de ouro alimentam a tensão. São a tradução dos paulistanos que passam por essa via durante a manhã: ágeis, preocupados, temerosos.

 

Gente que só desacelera para dar a direção a alguém perdido, para admirar uma vitrine. Ou se os amigos estiverem jogando conversa fora ali, a despeito do sol precocemente a pino. Aí a pausa para o café vai para a esquina. É onde Beatriz sabe por dois amigos que tem um admirador secreto à espera de um sim. O café desce mais doce, ela comenta. E lá vai a moça, lépida, Direita adentro, no contrafluxo dos passos e do clima da rua. Precisamente às 9 horas, Beatriz deixa para trás um casal que se encontra, se abraça, se beija e se despede. Ela segue pela praça, ele sobe a São Bento. Todos somem na multidão.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.