Insensatez sem filtro

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Se você não leu, sugiro que recupere e leia a crônica em que Ruy Castro, na Folha de S. Paulo, dia 25 de janeiro, registrou seus 25 anos sem álcool. Não vou recontar aqui o que esse baita escritor e jornalista contou lá, num depoimento capaz de encorpar ainda mais a admiração não só literária e jornalística que por ele tenho. Digo apenas que em lugar de trombetas, a que o Ruy teria direito, o que se ouve ali é a surdina da humildade de quem, depois de tanta luta, não dá a fatura por liquidada.Além de me emocionar, a crônica avivou em mim a lembrança de outro aniversário, bem mais modesto, no mesmo 25 de janeiro: meus 32 anos sem cigarro. Se o Ruy não o fez por vitória tão maior, não sou eu quem vai posar de herói. Até porque, confesso, não me custou tanto assim cortar de uma hora para outra o hábito insensato de acender 60 cigarros por dia. Não foi penoso como alguns anos antes, quando, fumando a metade disso, parei por nove meses, num daqueles rompantes em que, sobranceiro, o insuspeitado paladino da temperança entrega o maço para um e o isqueiro para outro. No começo, a bravata foi recompensada com a admiração de alguns basbaques ante minha suposta coragem e força de vontade. Ao cabo de poucas semanas, porém, quando já ninguém me pedia um cigarro, o que daria chance ao fanfarrão para tripudiar sobre o filante, eu me senti chafurdar numa patética melancolia pós-tabagismo. Deve ter sido nesse tempo que inventei a moda de responder, quando me perguntam se vou bem e não vou tanto: Sim, mas sem exagero. Moderadamente bem. Ao folhear revistas, eu me pegava encalhado nos anúncios de cigarros - never more! never more! -, em especial os de uma nova tentação, o Rothmans, que eu, demissionário do vício, morreria sem saborear. Em meio a um papo, de repente já não saberia dizer qual era o tema da conversação, tão envolvido estava na fumaça que o interlocutor, afortunado escravo do tabaco, botava pelas ventas. Na minha viuvez tabagística, chegava a fantasiar situações que justificassem recaída sem passar recibo de frouxo. De partida para a França, onde viveria uns anos, meu passaporte, no negror da era Medici, demorou a sair, alimentando a paranoia de quem estivera por um mês na gaiola política. Quando, na véspera do embarque, finalmente recebi o documento, a primeira coisa que fiz foi entrar, quase digo trêmulo, num boteco e pedir um maço de Luís XV - a marca preferida desde que caí fumante. Já contei como foi que isso aconteceu: levado por meu pai à inauguração de Brasília, aos 15 anos, fui acometido de uma apoteose mental que me impeliu a fazer alguma coisa, fosse o que fosse, para estar à altura do momento cívico - e quando vi lá estava o frangote a pipocar de tosse, pitando um cigarrinho também inaugural. Até então, tinha com o fumo uma relação platônica, na qualidade de proprietário de um maço de Chesterfield, presente da Carol, filha do cônsul americano em Belo Horizonte, símbolo de status que me limitava a ostentar, fechado, onde houvesse plateia. Nem preciso dizer que na volta de Brasília o Chesterfield virou cinza, a ele se seguindo uns mata-ratos para lá de nacionais, até que minhas finanças me proporcionassem o luxo modestíssimo do Luís XV. Vá a informação geriátrica: era cigarro sem filtro, como quase todos os que então ardiam no Brasil. Com isso, o papel às vezes grudava nos lábios, podendo até arrancar pele quando você, fechando a mão em concha, catava o Luís XV entre o polegar e o indicador, antes de soltar a baforada e beijar a menina, que nem fazia o Humphrey Bogart com a Lauren Bacall. Embora a namorada nunca tenha percebido, era esse o meu modelo, ainda que do grande Bogey me faltasse tudo, do trenchcoat ao chapéu, do magnetismo animal ao cigarro que jamais grudava nos beiços.Falei à beça - e ainda estou na década de 60! Prometo ser expedito se você me permitir voltar ao assunto na semana que vem. Um pouco mais de paciência, acabo já. Quem parou de fumar bem pode parar de escrever...

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