25 de janeiro de 2011 | 00h00
Durante séculos esse triângulo foi o centro de São Paulo e dentro dele outro triângulo, formado pelas Ruas São Bento, Direita e 15 de Novembro, tornou-se, com o tempo, "a cidade", o verdadeiro centro. Quando a população se livrou dos muros, foi morar nos bairros rurais, mantendo na vila casa de pau-a-pique para os dias de festa religiosa, como as celebrações da Semana Santa. Era centro porque ali ocorriam as cerimônias religiosas, onde se reunia a Câmara e onde estavam as igrejas em que se enterravam os mortos. Nas Igrejas da Boa Morte e de São Francisco ainda se pode ver no piso de madeira os túmulos antigos. Centro era o lugar da memória coletiva. Bairros eram os lugares em que as famílias tinham sólida casa de moradia e roças. Das que sobreviveram aos tempos coloniais, a Casa do Bandeirante é bela amostra. No centro estavam as instituições em que se falava português, a língua do Estado. Nos bairros estava a sociedade, onde, até o século 18, se falava a língua brasileira, isto é o nheengatu, a língua do povo.
No século 18, surgiu a designação de subúrbio para localização dos bairros rurais. Os bairros próximos ao triângulo foram definidos como arrabaldes: o começo da Rua da Consolação, o Largo do Arouche, o Cambuci, a Rua Líbero Badaró, o que estava fora do triângulo. Hoje tudo isso é considerado centro, justamente porque o centro se perdeu e perdeu identidade.
Durante muito tempo houve uma relação funcional entre centro e bairros. No século 18, em tempos de epidemia ou seca, a população ia em procissão buscar Nossa Senhora da Penha em sua igreja e só a levava de volta quando cessasse o flagelo. Nas festas de Santa Cruz, tradição paulistana desde o tempo dos jesuítas, a população a celebrava em antigos aldeamentos indígenas, como Carapicuíba e São Miguel. O longe e o perto tinham outras distâncias. Os bairros, geograficamente distantes do centro, estavam sociologicamente mais próximos do que hoje.
Quanto mais perto do centro ficaram os bairros, com bondes, trens e metrô, mais se isolaram na aparente autossuficiência criada pela descentralização do centro, que acabou se tornando um lugar de passagem, em vez de ser, como sempre fora, um destino, uma referência e um cume cultural e político. O bairro é o lugar da sociabilidade vicinal, cotidiana e comunitária. Pode-se sentir ainda intensa a cálida presença desse espírito em bairros como Mooca, Belenzinho, Vila Prudente, Ipiranga, alguns recantos do Brás, Lapa, Pompeia, Perdizes, Barra Funda, Santana, Freguesia do Ó. É bairro o que tem memória própria. A interiorização do centro nos bairros é pobre, reduzida ao econômico, às funções reprodutivas e cotidianas, de fato longe das funções do espírito.
São Paulo vive a periferização do centro. O centro vem sendo drenado de suas funções monumentais, simbólicas e rituais, portanto históricas e não cotidianas, o criativo e não o apenas reprodutivo. Trazer a periferia para o centro, mesmo na reciclagem de antigos edifícios para moradia de habitantes muito pobres, não restituirá ao centro as funções que deve ter. Em qualquer metrópole do mundo, centro e pobreza se repelem. O centro não convida à monumentalização da pobreza, mas à sua negação e superação. O centro é o lugar de realização do melhor que a riqueza moderna pode oferecer, como negação das injustiças e das diferenças sociais: as artes, os monumentos, as bibliotecas, os museus, a arquitetura demarcadora de tempos e épocas, o belo e significativo. O centro deve ser o lugar do preâmbulo da democracia, do acesso público à cultura, das manifestações da população, da constituição visível do povo como sujeito político. A morte do centro é o funeral da metrópole e da sociedade inteira.
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