Estátuas racistas devem ser derrubadas? Veja o que dizem historiadores

Debate aumentou depois de manifestantes antirracistas derrubarem monumentos pelo mundo; para historiadores, debate passa pelo reconhecimento do poder

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Por Brenda Zacharias
7 min de leitura

Pense no nome da rua onde mora, da praça mais próxima de sua residência ou até de sua cidade-natal. Se tiver o nome e sobrenome de uma pessoa, quem ela foi? Para ganhar tamanho prestígio, alguma ação importante deve ter executado. E quando comprovadamente fez parte de um regime escravista, praticou tortura ou perpetuou racismo e ações discriminatórias? É por esse tipo de revisão que estátuas e monumentos estão passando.

Há um limite tênue entre a celebração e a lembrança histórica, dizem historiadores. Nas últimas semanas, o debate em torno de esculturas de traficantes de escravos ou de bandeirantes, no Brasil, questiona quem deve ser homenageado ou não, e como deve ocorrer essa escolha. Veja o que dizem historiadores e pesquisadores sobre a revisão de monumentos em ambientes públicos, e se deve ocorrer a substituição ou não desses elementos quando são considerados ofensivos.

Antirracismo. Manifestantes de Bristol derrubam e lançam em um rio a estátua do traficante de escravos Edward Colston Foto: Keir Gravil via REUTERS

Estátuas entraram na mira após protestos antirracistas

Em manifestações antirracistas que acontecem em diferentes países desde o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, esses marcos não têm passado ilesos pelas multidões que caminham nas ruas onde estão instalados, como a escultura do traficante de escravos Edward Colston, derrubada, arrastada e jogada em um rio por manifestantes de Bristol, na Inglaterra.

Outro exemplo foi a estátua de Cristóvão Colombo, considerado o descobridor do continente americano, decapitada em um protesto em Boston, nos EUA; em Londres, onde o nome entalhado em um pedestal de Winston Churchill, primeiro-ministro do Reino Unido nas décadas de 1940 e 1950, ganhou o complemento ‘era racista’.

Mais recentemente, o Museu de História Natural, em Nova York, anunciou que vai retirar a homenagem ao ex-presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, que fica na frente da entrada principal do prédio. A figura do ex-presidente está acompanhada de um homem negro e um homem indígena, o que sinaliza a discriminações estruturais no país.

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Protesto em torno de uma estátua de Winston Churchill em Londres, na Inglaterra Foto: Foto: Peter Nicholls/Reuters - 07/06/2020

O significado dos monumentos na vida urbana

Os marcos colocados em uma cidade viram, principalmente, lugares de memória. “São sobretudo uma reflexão sobre o passado, um debruçar-se sobre esses vestígios presentes para selecioná-los, para dar sentido, não tanto ao passado, como ao próprio presente”, explica Petrônio Domingues, professor associado de história da Universidade Federal do Sergipe (UFS).

Ou seja, as pessoas e ocasiões escolhidas para serem homenageadas dizem mais sobre o que a sociedade ou líderes valorizam do que realmente podem ter significado no passado. Com isso, acabam virando um espaço de disputa política e social -- o mais forte e valorizado será o representado. Prática essa comum desde a Antiguidade, explica a professora Iris Kantor, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP): “Por trás desse debate sobre o protagonismo nos mortos no mundo dos vivos, havia a intenção de fortalecer grupos políticos, manter oligarquias urbanas ou consolidar dinastias, nobrezas.”

Para Casé Angatu, da etnia Tupinambá, professor na Universidade de Santa Cruz (UESC), na Bahia, essa memória não fica restrita ao simbolismo, justamente porque a representação se materializa em um espaço. “Essas esculturas dizem quem é o dono da cidade. São erguidas para reafirmar que esse lugar tem dono e, geralmente, é quem mandou fazê-la”, diz.

Por que esculturas como o ‘Monumento às Bandeiras’, em São Paulo, estão sendo questionadas

No caso das homenagens a bandeirantes, questiona-se a celebração de figuras que foram repressivas a grupos indígenas. Em São Paulo, estão representados em esculturas urbanas, como o Monumento às Bandeiras ou a estátua do Borba Gato, ambas na zona sul da cidade, como também no nome de rodovias e da sede do governo do Estado.

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Por isso, é natural que as estátuas criem questionamentos conflituosos, principalmente de grupos que foram violentados por tais figuras e nas ocasiões a que remetem. “Só existe história, reflexão histórica, a partir das questões do presente. Não são apenas os interesses de uma época que estão em jogo. É a própria estrutura do presente, o modo como a realidade se impõe a nós, que municia e guia nosso olhar ao refletirmos sobre o passado”, afirma Petrônio Domingues.

Este processo de revisão se estende a outros elementos de nosso cotidiano, reforça o historiador Flávio dos Santos Gomes, professor da pós-graduação em história na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Os usos das memórias são processos históricos com representações e narrativas. É fundamental entender esse processo. Se trata da reflexão sobre como a memória se dá nas imagens, sons, silêncios, locais, evocações, esquecimentos e escolhas”.

Sinalizaria, portanto, uma mudança no protagonismo de grupos sociais diferentes dos representados nas esculturas, explica o professor Eduardo Natalino, professor de história da América Pré-hispânica e da América Colonial na FFLCH-USP. "Aquela é a memória de um grupo social, de uma elite paulistana. Tal tipo de questionamento e de ato é uma maneira de trazer à tona certas histórias que foram absolutamente renegadas."

Monumento às Bandeiras, na região do parque Ibirapuera, pichado com as palavras 'bandeirantes assassinos'após protesto em 2013 Foto: Foto: Felipe Rau/Estadão - 02/10/2013

O que dizem os favoráveis à retirada de estátuas de bandeirantes e figuras racistas

Neste ponto, o debate pode divergir para dois entendimentos: um que busca a ruptura imediata com estes símbolos de dominação e outro que prefere conservá-los como documentos historiográficos. 

A exemplo da manifestação em Bristol, na Inglaterra, que acabou por derrubar a estátua do traficante de escravos Edward Colston, Carolina Piai, do coletivo Cartografia Negra, destaca o efeito que casos do tipo ganham. “O debate tende a esfriar depois de um tempo. Mas, depois que se derruba, eu não sei o quão rápido pode passar o debate. Ultrapassa a questão da história e chega na realidade. As pessoas só estão tomando essas atitude por causa de como as pessoas estão vivendo hoje”, explica ela.

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Discutir o racismo e superá-lo passa pelo reconhecimento constante de como ele se apresenta em um ambiente -- de quem está nele e em que posição, por exemplo, e das homenagens prestadas ali. Pedro Alves, também do Cartografia Negra, defende a ideia de um “apagamento explicado”: ao derrubar uma estátua, por exemplo, abre-se a brecha para que mais pessoas perguntem quais foram os motivos desse ato, quem estava representado ali e como desejam que aquele espaço seja ocupado de novo. “Você muda o rumo da narrativa a força”, diz o pesquisador.

Repensar a colocação de estátuas racistas é necessária por serem um elemento de destaque na vida urbana. Eduardo Natalino compara a urgência de se debaterem tais símbolos à literatura. “Até os anos 1970, eram comuns os livros que exaltavam os bandeirantes como aqueles que expandiram o território. Não devemos queimá-los, e sim temos que produzir outros que desmistificam a imagem dos bandeirantes. Porém, o ato de ler um livro é diferente de passar todos os dias a caminho do trabalho pela estátua do Borba Gato, com toda a sua monumentalidade.”

O que dizem os favoráveis a alguma forma de manutenção das estátuas

Há de se considerar que o momento em que os monumentos foram erguidos e que também constituem um material histórico. “Não faz sentido homenagear escravocratas, mas é preciso também compreender em quais circunstâncias políticas tais monumentos foram perpetuados”, defende Iris Kantor.

A historiadora Mary del Priore ecoa essa defesa. “Eles tiveram reconhecimento público e constituíram um serviço de utilidade pública em época diversa da nossa. São bens do Estado brasileiro e por isso pertencem a todos nós. Cabe a nós zelar por eles e esclarecer para as novas gerações por que estão ali.”

Os historiadores defendem, por exemplo, transpor as esculturas para museus e acervos públicos. “Talvez seja possível encontrar soluções diferentes, como por exemplo adicionar explicações nas placas, informações que  expliquem e apresentem os problemas à figura, a fim de refletirmos sobre a sua memória. É necessário recontar a história com outras vozes”, reforça o professor Petrônio Domingues.

Estátua em homenagem ao bandeirante Borba Gato, localizada na zona sul de São Paulo Foto: Foto: Alesp - 06-06-2019

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Os monumentos serão retirados pela Prefeitura de São Paulo?

Em nota, a Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de São Paulo diz que essa questão deve ser “amplamente debatida com a sociedade” por meio de consultas públicas. “A SMC é sensível à causa, tanto que tem como política a reformulação de nomes dos equipamentos que simbolizem ou homenageiem personagens e fatos que representem a opressão histórica da população brasileira.”

No texto, cita a alteração do nome da Casa do Sertanista para Casa do Caxingui, na zona oeste, onde hoje funciona o Centro de Referência de Cultura e Arte Indígena, e a dedicação exclusiva do Centro de Culturas Negras Mãe Sylvia de Oxalá, na zona sul, cuja programação é exclusivamente voltada para a cultura afro-brasileira. Porém, em relação ao Monumento às Bandeiras ou à estátua do Borba Gato, ainda não recebeu nenhuma demanda formal para revisão dos monumentos.

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