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Empreendimentos mudam identidade dos bairros de SP

Especialistas alertam para descaracterização de partes da cidade; 'Hoje na calçada só tem segurança de preto', diz morador do Paraíso

Por Valéria França
Atualização:

Ao chegar ao trabalho numa manhã, o comerciante José Carlos Saba, de 60 anos, percebeu que um quarteirão inteiro havia sumido a poucos metros de seu negócio. Das antigas casas, restavam apenas alguns escombros e muito entulho, como se alguém tivesse jogado uma bomba no local. Dono da lanchonete New’s, há 40 anos na região, e mais recentemente de uma padaria, ambas no Paraíso, Saba se acostumou a ver imóveis vizinhos pouco a pouco darem lugar a prédios. "Mas nunca tinha visto um quarteirão inteiro sumir", conta ele. "É muito agressivo."

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Essa quadra fica no perímetro formado pelas Ruas do Livramento, Joinville, Charles Camoin e Curitiba, perto do Parque do Ibirapuera, na zona sul. "Soube que ali será levantada mais uma torre luxuosa residencial." Sim, mais uma, porque na frente da padaria de Saba, que fica na Rua Pirapora, paralela à Rua do Livramento, um prédio quase no fim da construção tem apartamentos de 407 m² a 891 m². A torre de alto luxo, com unidades a partir de R$ 5,3 milhões, ocupa mais da metade do quarteirão. Poucos metros adiante, há um outro terreno cercado, esperando mais uma torre subir.

Esse processo ocorre em outros bairros. Em Perdizes, por exemplo, incorporadoras também têm derrubado quadras inteiras ou quase inteiras de uma só vez. "São bairros que tiveram o valor do metro quadrado muito valorizado. Costumo dizer que o Paraíso pegou emprestado o valor do metro quadrado dos Jardins e Perdizes, o de Higienópolis", diz o diretor da Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio (Embraesp), Luiz Paulo Pompeia. "Mas, para que a obra compense, o incorporador precisa de grandes extensões."

Para se ter ideia da valorização dessas áreas no últimos dois anos, o preço do metro quadrado subiu de R$ 11,6 mil para R$ 14,4 mil no Paraíso, bairro hoje considerado pelos construtores como uma extensão dos Jardins. "Os incorporadores estão famintos. E há muito proprietário desavisado, que recebe uma oferta pela casa pouco acima do valor do mercado. Ele pensa que está ganhando dinheiro, mas está perdendo. Depois da demolição de seu imóvel, o terreno livre atinge um valor muito superior ao que foi pago", alerta Pompeia.

Mudança de perfil. No momento em que as casas de classe média dão lugar a torres luxuosas, o perfil sócio econômico se eleva. "Nunca presenciamos uma mudança tão rápida de tipo de morador", diz Miguel Antônio Della Rosa, de 70 anos, que tem uma importadora de material médico nas redondezas. "Antes, as pessoas cuidavam das ruas", diz ele, que chegou a revitalizar uma das praças da região com a ajuda dos vizinhos. "Mas hoje os quarteirões estão murados e na calçada só tem segurança vestido de preto ", lamenta.

A homogeneização do perfil socioeconômico de uma região nem sempre é bem vista. "Acho nefasto acabar com a diversidade de uso e de classe social", diz Fábio Mariz Gonçalves, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). "Quando você derruba casas com padrões diferentes, a padaria, a mecânica e outros pequenos negócios, a rua perde a vida. Ela fica vazia e insegura." Para Mariz, o ideal seriam prédios de uso misto e modelos como o Conjunto Nacional, na Avenida Paulista.

Memória. "Não há dúvida de que a verticalização é um processo natural da urbanização. Mas arrasar um quarteirão significa que a cidade está sendo desconsiderada", diz o arquiteto Guto Requena, especialista em habitação e design contemporâneo. "É um processo que apaga os resquícios de memória do paulistano. E a cidade fica sem identidade."

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De sua lanchonete no Paraíso, Saba lembra da época em que os vizinhos da Rua Pirapora pediam para a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) fechar a rua para a tradicional festa junina. "Os vizinhos se foram e, em um piscar de olhos, as casas sumiram", diz. "E a gente tem de engolir isso e se acostumar."

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