Ele dá o tom no chá da tarde

Há 14 anos, a música do pianista Paulo Freire embala passeios e compras em shopping nos Jardins

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Por Iuri Pitta
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Na cidade dos apartamentos de três quartos em 60 metros quadrados, piano de cauda é mais que artigo de luxo. Soa como lembrança de tempos passados, quando os paulistanos passeavam mais pelas praças que pelos shoppings. Para um pianista como Paulo Freire, filho de mãe concertista nascido no Cambuci há 66 anos, isso poderia ser uma observação nostálgica, dita ao som de As Time Goes By. Mas esse sentimento não combina com um profissional que até hoje se emociona ao saber que sua música tocou um ouvinte. E isso vem à tona quase diariamente, nos corredores do Shopping Iguatemi.É assim há 14 anos. Três vezes por dia, de segunda-feira a sábado, Freire dedilha um dos dois pianos do shopping. "Cada horário tem seu público cativo. Quando vejo pessoas conhecidas, que estão sempre aqui, toco a música favorita delas", conta. Na apresentação vespertina, canções como Moonlight Serenate e New York, New York são obrigatórias. Entre as nacionais, músicas de Roberto Carlos não podem faltar, mas também se ouvem chorinhos, Tom Jobim e, para homenagear algum fazendeiro de passagem por São Paulo, Menino da Porteira é uma das que estão na ponta dos dedos. Quando surge um ouvinte mirim, dá-lhe trilha dos Flintstones, de desenhos da Disney e até Xuxa.Para os frequentadores assíduos, que diariamente tomam seu café ou chá da tarde ou estão sempre almoçando ou jantando no Iguatemi, ouvir Freire dedilhar o piano faz parte do cardápio. "Uma senhora acabou de reclamar que eu não estava tocando. Ela sempre pede para eu tocar Noturno, de Chopin", diz, sentado à mesa da lanchonete próxima a um dos instrumentos. Para contar sua história, Freire convocou como substituto um de seus dois pianistas de apoio - além deles, o grupo conta com mais três instrumentistas. O chá da tarde daquela senhora não teve o mesmo gosto de sempre.Palácio. Entre os anos 1970 e 1980, pedidos de música igualmente importantes eram feitos em outros salões. Casamentos e noivados, recepções de famílias de banqueiros ou grandes empresários de São Paulo eram duas vezes mais frequentes que hoje, e geralmente era Freire quem animava essas noites que podiam virar a madrugada.Naquela época, Freire preferia tocar órgão e, de tanto tocar em festas da alta sociedade, conheceu pessoas do cerimonial do Palácio dos Bandeirantes. Dos governos Paulo Egydio Martins (1975-1979) a Luiz Antonio Fleury (1991-1995), Freire volta e meia era convocado para tocar em festas oficiais e jantares para autoridades."Eu ia buscar informações sobre os convidados, pesquisar músicas que eles gostariam de ouvir", lembra ele. Foi assim quando uma comitiva de empresários japoneses veio ao Brasil, a convite do então ministro Delfim Netto. Freire foi ao consulado nipônico e conseguiu a partitura de uma canção tradicional. Foi o momento de descontração entre os seriíssimos japoneses e a ponte para, tempos depois, gravar um disco no país asiático.Nos anos 1980, ao tocar na recepção de um presidente uruguaio, esperou acabar o jantar para soltar as primeiras notas de La Comparsita. O agrado premeditado fez sucesso. "Ele saiu de onde estava para me cumprimentar."A mulher de Paulo Egydio, Lila Martins, foi a primeira-dama que mais chamou Freire para festas oficiais. Em um 1.º de Maio, ela levou dezenas de trabalhadores para o Palácio dos Bandeirantes e fez questão de que o músico tocasse para eles. "Escolhi um repertório bem popular e pus todo mundo para dançar", diverte-se.Corredores. Quando as festas começaram a ficar mais raras, no fim dos anos 1980, Freire entrou em outro filão. Alguns dos já numerosos shoppings da cidade investiram em espaços e atrações diferenciadas, como música ao vivo em áreas gastronômicas. E foi assim que o pianista acostumado às mansões dos Jardins e palcos Brasil afora se tornou um músico de shopping. Primeiro no Morumbi, e depois no Iguatemi.Até hoje, Freire toca em casamentos e noivados, quase sempre de famílias para as quais toca há tempos. "Ainda há casais que preservam essa tradição e me procuram, porque toquei no casamento dos pais deles. Até me arrepio de lembrar a felicidade dessas pessoas", diz. Ao ver a dedicação de Freire à música, e seus olhos marejarem ao relatar a emoção que sua arte provoca nele próprio e nos outros, fica nítido o quanto um piano de cauda é mais que um artigo de luxo.

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