Depoimento: 'De carona com um trator consegui chegar ao jornal hoje'

Um motorista resolveu pegar seu trator para transportar as pessoas de um lado ao outro na Avenida Ermano Marchetti, alagada

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Por Giovana Girardi
Atualização:

A avenida Ermano Marchetti, na Lapa, interditada desde a madrugada desta segunda-feira, 10, no trecho entre a Rua Cenno Sbrighi e a praça Jácomo Zanella, só podia ser transposta com a ajuda de um transporte, digamos, pouco usual: um trator. Foi assim que consegui chegar nesta tarde à redação do Estado, depois de mais de duas horas que eu tinha saído de casa, a cerca de 5 km do jornal.

Com todos os dois principais acessos de Perdizes e Pompeia para a zona Norte interditados por causa das fortes chuvas que atingem a cidade desde domingo, me aventurei de uber pela Lapa com a esperança de atravessar a ponte da Freguesia do Ó, sem sucesso. Desci do carro no viaduto sobre a estação de trem e saí andando, achando que atravessaria a ponte a pé. 

Motorista Paulo Copino carregou pessoas no trator onde trabalha na Avenida Ermano Marchetti, na Lapa Foto: Giovana Girardi / Estadão

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Na avenida, um monte de gente formava uma espécie de fila desorganizada à espera do "uber". Legal, pensei, os carros estão conseguindo vir pela avenida. Nada... O uber era o trator com o qual Paulo Copino, de 39 anos, trabalha no dia a dia em uma concreteira nas proximidades. Quando viu tudo alagado, passou a dar uma carona para os colegas de trabalho. "Mas quando vi todo mundo parado aqui, resolvi ajudar quem quisesse. Estou aqui, indo e voltando, desde às 9h40", ele me contou. Já tinha passado das 16h30. 

Resolvi embarcar. Junto comigo, dentro da pá coletora -- é esse o nome? -- tinham mais umas dez pessoas. A pá se mexeu e alguém só falou: "Seja o que Deus quiser". Eu estava na borda, um senhor olhou pra mim e falou: "Fica tranquila que eu te seguro." E assim fomos. Ao cruzarmos o alagamento, várias pessoas tentaram pagar Paulo, mas ele não quis nada. Jogou as notas no chão. "Só quero ajudar, está tudo certo", disse.

Um dos "passageiros" era Fabio Lisboa, que trabalha na Tim. Ele havia entrado no trabalho às 20h de domingo e deveria sair às 8h desta segunda. Por volta das 4h, viu a avenida começar a encher. "Já não tinha mais como sair. Meu carro está no estacionamento, já tentei ir de um lado para o outro, mas não vi saída", contou. Ele pegou o trator para um lado, mas os ônibus que passavam não lhe serviam. Voltou para o outro e ia esperar um pouco mais. Morador do bairro Aricanduva, disse que estava acostumado a ver enchentes para aqueles lados. "Lá em casa é comum, mas aqui eu nunca vi assim", disse.

Outra passageira era Nasália Rodrigues, que trabalha como cuidadora em uma casa próxima ao Parque da Água Branca. Ela deveria ter saído às 10h do trabalho, mas ficou até as 13h porque a pessoa que deveria rendê-la não conseguia chegar. O ônibus que a deixaria em apenas 30 minutos em casa, na Rua Inajar de Souza, na Freguesia do Ó, não estava conseguindo circular. Ela começou a rodar pela região, ficando ilhada aqui e acolá. Com o trator, passou um pedaço do caminho. 

Caminhamos até a avenida de acesso à ponte da Freguesia, também alagada. Algumas pessoas começaram a pular na carroceria de um caminhão. Tentamos subir também, mas o motorista arrancou. "Ele não era tão bonzinho quanto o moço do trator", lamentou Nasália. Eu também lamentei. 

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Me despedi dela e arrisquei a travessia a pé, com água no joelho. Calçando galochas altas, me achei muito protegida. Deu certo. Do outro lado do "laguinho", um ônibus que vinha da Freguesia fazia o retorno. Um desses grandalhões biarticulados manobrava uma meia volta sobre a ponte. Coisa inacreditável em São Paulo num dia normal. Subi. Atravessei a ponte. Ufa, agora estava perto do jornal, que fica à beira da Marginal Tietê, no Limão.

Minha editora me pediu uma live. Voltei para a ponte. A marginal, logo abaixo, tinha transbordado. Um motorista tentava empurrar seu carro que boiava. Live feita, retomei o trajeto. Caminhei até a Avenida Nossa Sra do Ó e peguei um uber. Cheguei ao jornal às 17h30, quase 2h30 depois de sair de casa. De carro teria levado 15 minutos.

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