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Deixa pra lá

Por Humberto Werneck
Atualização:

Desconfio que Rubem Braga não gostaria nada desse rebuliço em torno do seu centenário de nascimento, transcorrido neste 12 de janeiro. Quando menos pela ausência, entre os comemorantes, de um só contemporâneo com fôlego para ajudá-lo a soprar tanta vela. Depois, como se sabe, era homem recatado, sem qualquer semostração. Um camarada de poucas e ótimas palavras, de preferência por escrito. De corpo presente, não me lembro de tê-lo ouvido engatar mais que duas frases. Uma já trazia ouro em pó suficiente. Aquela, por exemplo, famosa, com que encerrou a conversa de quem lhe pedira definição do gênero em que segue sendo inigualável: "Se não é aguda, é crônica". Em momento de invulgar loquacidade, ele me proporcionou nada menos de três frases, curtas, irredutíveis. Eu tinha contado de meus planos de escrever o livro que viria a ser O Santo Sujo - A vida de Jayme Ovalle. "Mexe com isso não", resmungou. "O Ovalle só tem quatro histórias. Três o Fernando Sabino já contou e a quarta é mentira." Depois eu soube que não era bem assim, mas se tivesse ouvido o conselho não teria talvez empatado tanta energia num projeto que levou quase duas décadas para virar livro. Estávamos, naquela noite de 1987, tomando uísque e papeando sobre João Cabral, personagem de uma reportagem de capa para a IstoÉ (Um poeta na capa de revista semanal! Isto era! Aliás, já que estamos entre parênteses, me permita mais um pouco de contação de vantagem: emplaquei também o Drummond, na Veja, em 1977, no que foi a única aparição em vida do poeta-mor numa capa de revista graúda). Pois bem, lá estávamos eu, o fotógrafo Ricardo Chaves, o Otto Lara Resende e o dono da casa, na cobertura de Rubem Braga, sobre o mar de Ipanema. Descalço e empoleirado num canapé (assim aparece numa foto do Kadão), o cronista se limitava a pingar raros e precisos comentários na conversa e fartura de uísque em nossos copos. O Otto estava como sempre endiabrado, esgalhando sua prosa hipnótica a pretexto de João Cabral ou a pretexto algum - e me ocorreu então que o Rubem não precisava mesmo falar muito, cercado que vivia de mineiros palradores. Na morte de um deles, o Hélio Pellegrino, em 1988, a IstoÉ lhe pediu uma crônica, e ele, para relatar o que presenciara no velório em São João Batista, nos deu um texto intitulado "Nunca vi tanta mulher bonita". Rubem Braga gostava de bulir com o catolicismo praticante da sua mineirada, a fé religiosa que neles convivia com mortais ou veniais estripulias. Já nos anos 40, quando se tornaram amigos vitalícios, o cronista divertia-se com o hábito que tinham de passar o carnaval enfurnados em retiros espirituais. Aquilo, batizou Rubem, era um "Almaval" - neologismo registrado num poema de 1947, em que a folia da alma é descrita como "um profundo esbaldamento moral". "Os amigos do Almaval" é um dos 14 poemas a que se resumiu o lado menos conhecido da obra do "velho bardo ocasional", como ele próprio se rotulou, reunida no Livro de Versos, voluminho tosco saído no Recife em 1980. Dele fazem parte também a louvação de misteriosa mulher ("De todas as primas feias da roça que eu já tive/ és a mais insensatamente linda") e um "bilhete" endereçado a um amigo poeta e diplomata que então vivia em Los Angeles: "Tu, que te chamas Vinicius/ de Moraes, inda que mais/ próprio fora que Imorais/ quem te conhece chamara/ - Avis rara!" Há ainda uma "Ode aos calhordas" começando assim: "Os calhordas são casados com damas gordas/ que às vezes se entregam à benemerência:/ as damas dos calhordas chamam-se calhôrdas/ e cumprem seu dever com muita eficiência". O melhor do livrinho, porém, é um soneto em que "na tarde ruiva das amendoeiras" o poeta bissexto e sua amada passeiam na praia, os "corpos leves e lavados" levando "o sentimento do prazer cumprido". Que musa teria ateado nele versos tão inspirados?, queriam todos saber. Mariínha, apelido da deslumbrante Tonia Carrero? "Deixa pra lá", desconversava Rubem Braga, "deixa pra lá".

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