De perto, ninguém é normal

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Por Redação
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Deu no jornal: salsichas contêm DNA humano. Para alguns conhecidos meus isso confirmou o óbvio, que salsichas são entes do mal. Para os biólogos moleculares esse é um resultado mais que esperado. Na verdade tudo não passa de um excesso de sensibilidade, não das pessoas que agora se recusam a comer salsichas, mas dos métodos analíticos disponíveis em qualquer laboratório moderno.

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A sensibilidade é uma coisa boa. Captar as mudanças de humor de outras pessoas, os odores do ambiente, ou as nuances de um pôr-do-sol, não só nos ajuda a sobreviver, mas nos dá prazer. Durante a história evolutiva do Homo sapiens nossos sentidos foram calibrados. Possuímos uma sensibilidade adequada ao ambiente em que vivemos. Não é bom ouvirmos de mais nem de menos. Nem sentirmos todos ou nenhum odor. Pouca sensibilidade e você se isola do mundo, alta sensibilidade e seu cérebro é inundado por informações desnecessárias (ou mesmo desagradáveis).

O problema é que o desenvolvimento tecnológico não é regido pela lógica da seleção natural. Nos últimos anos o homem construiu equipamentos cada vez mais sensíveis, capazes de detectar quantidades minúsculas de moléculas específicas no meio de um enorme palheiro, ou mesmo de uma salsicha. São os resultados obtidos com esses equipamentos que têm causado toda a confusão.

O primeiro escândalo ocorreu por volta de 1980. Um grupo de cientistas resolveu analisar os componentes encontrados nas balinhas deixadas como brinde na saída dos restaurantes. Usando um espectrógrafo hipersensível foi possível detectar a presença de componentes da urina humana. As pessoas iam ao banheiro, passavam pelo balcão e pegavam as balas. O escândalo causado por essa descoberta teve duas consequências. A primeira é que hoje todas as balas são embrulhadas individualmente. Mas a segunda, talvez mais importante, passou despercebida. Analisando a quantidade de compostos provenientes de urina encontradas nas balas, os cientistas concluíram que elas eram minúsculas, verdadeiramente desprezíveis. Portanto, mesmo que as pessoas lavassem muito bem suas mãos era impossível garantir que nenhuma molécula proveniente da urina contaminasse as balas. O problema não era o nível de contaminação, mas a alta sensibilidade do equipamento usado na análise.

Décadas depois, um outro estudo provocou o mesmo tipo de reação. Cientistas usaram cotonetes para coletar amostras em tempos de mesa, maçanetas e corrimões. Em seguida analisaram os tipos de micróbios encontrados nessas amostras. Bactérias presentes nas fezes humanas foram encontradas em todas as superfícies. Pânico geral, vivemos num chiqueiro. Novamente a culpa não era de nossos hábitos de higiene, mas da alta sensibilidade dos métodos utilizados. Basta um punhado de bactérias para o método acusar sua presença.

Agora essa história se repete, DNA humano foi encontrado nas salsichas. Além disso foi demonstrado que salsicha de porco contém DNA de galinha e salsichas de galinha podem conter DNA de porco. Novamente a culpa não é dos métodos de fabricação, mas da alta sensibilidade do equipamento utilizado para fazer a análise. Basta um pelo de porco ter chegado ao galinheiro ou uma pena de galinha ter sido levada pelo vento ao chiqueiro. Essa minúscula contaminação é detectada pelo métodos modernos.

Faz séculos que os químicos sabem que a pureza absoluta é uma idealização, não existe no mundo real. Mesmo a mais pura amostra de água contém uma infinidade de compostos inorgânicos em baixíssimas concentrações. E se o equipamento for realmente sensível, até minúsculas quantidades de ouro ou urânio podem ser encontras nas águas mais puras. Mas como as análises químicas já existem faz mais de um século, estamos acostumados a ver nos rótulos de águas minerais não só a quantidade de contaminantes presentes, mas também a quantidade máxima aceitável.

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Da mesma maneira que temos um limite máximo aceitável para metais pesados na água, teremos que definir um limite máximo para quantidade de DNA humano presente nas nossas salsichas. Ou a quantidade máxima de DNA proveniente de bactérias presentes nos trincos ou nos corrimões de ônibus.

Métodos sofisticados de análise são úteis, mas muitas vezes geram informações que preferiríamos desconhecer. Esse problema também existe na medicina. Um bom exemplo são os resultados obtidos quando usamos modernos equipamentos de ressonância magnética nuclear para examinar o corpo de uma pessoa aparentemente saudável. Esses equipamentos são tão sensíveis que é praticamente impossível examinar um ser humano e não encontrar pelo menos alguma coisinha um pouco fora do normal. E aí vem o problema, o que é normal e o que é patológico? Da mesma maneira que não existe água sem algum átomo de metal pesado, que não existe maçaneta sem patógeno, e que provavelmente não existe salsicha sem DNA humano, não existe ser humano sem alguma pequena anomalia.

E assim, aos poucos, em cada uma dessas áreas, vamos descobrindo que não basta simplesmente descobrir uma anomalia, é necessário definir o quanto dessa anomalia estamos preparados a aceitar. Ou seja o quanto de anormalidade é aceitável.

Em um mundo em que as máquinas são mais sensíveis que nossos sentidos, só nos restam duas possibilidades. Ou buscamos a perfeição, o que é impossível, pois essa é uma meta a ser atingida somente pelos goleiros, ou aceitamos o que diz Caetano Veloso: De perto, ninguém é normal.

FERNANDO REINACH É BIÓLOGO

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