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De carne de bode a celulares - muitos celulares

Apenas 20% do que vai parar nos Achados e Perdidos da maior rodoviária da América Latina é recuperado

Por Edison Veiga
Atualização:

Quando tinha 7 anos e se mudou com a família para São Paulo, a piauiense Mayara Veraz se impressionou com a primeira coisa que viu por aqui: o Terminal Rodoviário do Tietê, o maior da América Latina, por onde circulam 90 mil pessoas por dia - o equivalente a dez vezes a população da cidade de Holambra. "Nós nos perdemos e levamos um bom tempo para conseguirmos nos localizar", lembra.   Veja também: Uma balsa. Dentro de São Paulo Uma cozinha para atender à bicharada 560 mil postes = 300 lâmpadas queimadas por dia O endereço dos alimentos Comida para quem tem fome O caminho da água, dos mananciais às torneiras A metrópole desvendada Antes da missa da Sé, o corre-corre do sacristão O senhor da hora certa Depois da última estação   Doze anos depois, ela é a moça de sorriso bonito que cuida da seção de Achados e Perdidos da gigante rodoviária. Todos os meses, em média 150 objetos e documentos vão para suas mãos. Em dezembro, mês de férias escolares e feriados de final de ano, o aumento do fluxo no terminal fez com que o número de itens perdidos chegasse a 309. E já apareceu de tudo: mão mecânica, geladeira, urna funerária, dentadura, cadeira de rodas. "Até muletas. A rodoviária faz milagres", brinca.   Os objetos encontrados na rodoviária são entregues no balcão de informações. Se for em horário comercial, a própria Mayara os recebe, cataloga e leva para uma sala onde eles são guardados. Se for à noite, o material é encaminhado a um supervisor, que fica responsável por ele até a manhã seguinte. É preciso ser observador e detalhista para cadastrar os objetos. Na fichinha de cada um, em vermelho vai o nome da pessoa - se for possível identificar de alguma forma - e em preto, uma minuciosa descrição.   Quanto mais informações, melhor. "Tenho de garantir que aquele objeto é da pessoa que veio procurar, para que ninguém queira se aproveitar", diz Mayara. Ou seja: não é permitido que quem perdeu algo veja o item antes, para que não aconteçam golpes de espertinhos que querem surrupiar algo dos Achados e Perdidos. "No caso de um celular, pergunto até quais contatos estavam na agenda dele, para me certificar de que se trata do verdadeiro dono", exemplifica. Celulares, malas e documentos estão entre as coisas mais perdidas no Tietê.   Nem 20% do que vai parar na seção é buscado de volta por quem perdeu. Depois de dois meses, o material não solicitado segue em doação para entidades filantrópicas. Dos que são recuperados, Mayara se lembra de algumas histórias marcantes. "Perto do fim do ano, esqueceram uma caixa de isopor cheia de carne de bode", conta. "No dia seguinte, a pessoa veio buscar."   "Teve também um gay que perdeu uma mala cheia de roupas bem chiques. Ele chegou fazendo um escândalo", relata. "Mas, quando a pegou de volta, ficou tão feliz que elogiou por escrito." A felicidade, aliás, é uma constante. E, pela importância do material, Mayara se lembra especialmente de uma médica que havia perdido todos os seus certificados. "Ela me agradecia muito, sem parar."   Tem gente que oferece dinheiro como recompensa? "Acontece sim", diz. "Mas a gente não pode aceitar." Para Mayara, que estuda Psicologia, o contato diário com as pessoas e com suas histórias é a maior recompensa.

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