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Contra cracolândia, Rio cria 'mulheres da paz'

Programa social pretende utilizar 1.250 moradoras de áreas carentes, com histórias de superação, para incentivar os vizinhos a buscar uma vida melhor

Por Clarissa Thomé e RIO
Atualização:

Elas contam histórias de abandono, fome, maus-tratos e abuso sexual. Algumas usaram drogas, viveram nas ruas, afastaram-se dos filhos. Outras os perderam para o tráfico. Mas neste enredo não são as vítimas. Elas acabam de assumir um novo papel - o de "mulheres da paz", protagonistas de um programa social que pretende afastar das cracolândias jovens e adolescentes de 44 comunidades do Rio, divididas em sete regiões.A escolha dessas 1.250mulheres não foi aleatória. Com histórias de superação e alguma liderança, foram recrutadas nas favelas em que vivem e atuarão ali mesmo, abordando os vizinhos. São elas que fazem um retrato dos casos em que há maior risco. E, sem linguajar técnico, com a intimidade conquistada pelos anos de convivência, vão oferecer alternativas para esses jovens - cada uma ficará responsável por dois adolescentes em situação de risco. "Elas conhecem melhor as angústias e sofrimento de quem está em uma situação complicada como essa. Ninguém melhor do que a pessoa que teve contato com o problema, que foi dependente química, que teve alguém da família envolvido, para poder tratar e prevenir que outras pessoas entrem para esse mundo", afirma o secretário municipal de Assistência Social, Rodrigo Bethlem.O trabalho começou na quarta-feira. Com uma bolsa cor-de-rosa, munidas de prancheta, visitam as casas em horários pouco convencionais - tem o vizinho que sai cedo, tem aquele que trabalha à noite. Elas oferecem o ombro amigo. Ouvem e anotam todo tipo de queixa e necessidade: creche para deixar o filho pequeno, registro de certidão de nascimento tardio, curso de informática para o adolescente.Desabafo. "As pessoas conversam, desabafam. Muitas não sabem onde podem resolver aquele problema, ficam pulando de repartição em repartição. Só precisam de um empurrão. Ainda não entrei para falar de droga, tráfico. Tem de ganhar confiança, resolver as coisas práticas, avançar e recuar", diz Anara Coutinho Macedo, de 42 anos, que atua na Vila Kennedy.Anara teve vida sofrida - foi violentada pelo pai aos 9 anos e depois explorada sexualmente pela mãe. Viveu na rua. Em troca de comida e casa, trabalhou dos 13 aos 15 anos como empregada doméstica do traficante Paulo Roberto de Moura, o Meio Quilo, comparsa de José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, que morreu ao cair de helicóptero numa fuga frustrada de presídio.Acabou estuprada por um dos seus homens. Meio Quilo obrigou o pai a registrar a criança e o expulsou da favela. Anara deixou o Rio e viveu por dez anos no Espírito Santo, onde teve outras duas filhas. De volta à cidade, terminou por criar as meninas sozinha, vivendo de bicos de diarista. "Quando saí do Rio, diziam que eu não prestava. Minha mãe disse que eu nunca ia ser feliz, porque fui a pior coisa que aconteceu para ela. Hoje sou feliz, tenho o respeito das pessoas."Curiosamente, a primeira intervenção que fez para tirar jovens de situação de risco foi com a filha de uma das mulheres da paz. "A minha colega tem cinco filhos, trabalha à noite em hospital, e a filha fugiu para o Baile da Metral, um lugar que tem droga, briga. Chamei a menina para conversar. Agora estou 'caçando' curso de informática para ela."Também foi uma adolescente que motivou o primeiro registro de Suzana Silva Neves, de 52 anos, na comunidade Reta João XXIII, em Santa Cruz, na zona oeste. A diarista Rosinete de Oliveira Silva, de 40 anos, queria recuperar o Bolsa-Família de R$ 120. Tem sete filhos e cuida ainda da vizinha adolescente e do seu bebê - a mãe da menina morreu recentemente.Rosinete perdeu o benefício porque a filha, de 16 anos, abandonou a escola. "Ela matava aula, sumia de casa. Até ao necrotério fui." Suzana promete se empenhar para recuperar o Bolsa-Família e conversar com a menina. E ela já voltou a estudar.

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