Construções em caminho da Independência vão virar café e restaurante portugueses; veja vídeo

Pouso e rancho estão em processo de restauro; ruínas de alojamento serão transformadas em loja de suvenir e parada de tirolesa

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Por Priscila Mengue
9 min de leitura

Em meio às celebrações dos 200 anos da Independência, parte dos monumentos erguidos para o centenário da data, em 1922, estão em obras nos Caminhos do Mar, na Estrada Velha de Santos. Os trabalhos envolvem o restauro e a mudança de uso de parte das construções. Entre as principais mudanças,  o Pouso de Paranapiacaba e o Rancho da Maioridade passarão a funcionar como espaços de gastronomia portuguesa

Pouso de Paranapiacaba está em fase final de restauro Foto: Taba Benedicto/Estadão - 20/07/2022

O primeiro a ser entregue será o Pouso, em fase final de obra, com começo de operação previsto para os próximos meses. Temporariamente, funcionará como cafeteria e, depois, como restaurante. A mudança ocorrerá após a conclusão da obra no Rancho, cuja restauração está em preparo e envolve também a adaptação para um café.

Das obras, a descrita como a mais “trabalhosa” pelo engenheiro Francisco Damião do Nascimento, que coordena a produção, é a do Pouso, em que cerca de 60% da madeira do telhado estava comprometida e teve de ser substituída, por exemplo. “Estava colapsado em alguns lugares”, comenta. 

Construído originalmente para ser um ponto de apoio para viajantes, com lareira, fonte de água e outros recursos, o espaço está em adaptação para o novo uso. Um cômodo foi transformado em uma cozinha de restaurante, enquanto o salão principal será destinado à disposição das mesas e cadeiras. 

Entre as mudanças para permitir acessibilidade, estão a adaptação dos banheiros e a futura instalação de uma plataforma de elevação na entrada. Guarda-corpos também serão instalados nas varandas, assim como foram tomadas outras medidas necessária para seguir as legislações atuais.

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Também se decidiu manter parte das marcas deixadas ao longo do tempo nos espaços. Os azulejos de temas agrícolas do salão principal foram quase inteiramente retirados para o restauro em um estúdio, enquanto algumas peças em melhores condições foram mantidas no local,como "testemunhos". Há a ideia de que o painel seja exposto em outra parte do parque quando recuperado.

Como a maioria dos demais monumentos erguidos para o centenário da Independência na antiga estrada, o rancho é caracterizado pelo uso amplo de granito e o revestimento em azulejo na fachada e nas áreas internas. Ele fica localizado nas proximidades da portaria de São Bernardo do Campo dos Caminhos do Mar, que seguem até Cubatão.

Parte dos monumentos também tem murais em azulejo. No Pouso, por exemplo, há um exemplar na entrada que retrata a malha de transporte vigente e prevista à época no Sudeste, que também está em processo de restauro.

Rancho da Maioridade é um dos monumentos em processo de restauro nos Caminhos do Mar Foto: Taba Benedicto/Estadão - 20/07/2022

Os trabalhos são liderados pelos irmãos Marcelo e Toninho Sarasá, filhos de Gerardo Martin Sarasá, restaurador espanhol que recuperou as mesmas construções há cerca de quatro décadas, conhecido especialmente pela expertise em azulejaria e vitrais. “Fiz questão de utilizar os mesmos pincéis”, relata Marcelo, de 49 anos, sobre o restauro no mural do Pouso. 

Ele também tem aplicado a mesma técnica e optou por manter a aplicação de tintas à base de minerais. “É emocionante. Lembro perfeitamente dele restaurando azulejo por azulejo”, comenta. “Não só estou recuperando a história desse momento, como a história da minha família também.”

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O outro espaço gastronômico será no Rancho da Maioridade, cujo processo de restauro está em preparação. Os andaimes multidimensionais foram instalados, escolhidos nesse modelo porque podem circundar a fachada e permitem a proximidade necessária para recuperar os azulejos in loco, alguns localizados no topo da edificação.

Projeto prevê esqueleto de metal e vidro nas ruínas dos Caminhos do Mar Foto: Taba Benedicto/Estadão - 20/07/2022

Como nos demais monumentos da lista de restauro, o rancho passou por um processo de prospecção das intervenções que sofreu ao longo das décadas, como a identificação de todos os tons utilizados em pinturas. Uma das adaptações que passará é a retirada da banheira de um dos espaços, assim como outras obras de acessibilidade.

Outra construção centenária que terá novo uso é o que restou do antigo alojamento. O projeto prevê que as ruínas sejam transformadas em uma loja de suvenir e em uma das paradas de uma tirolesa. 

Para tanto, as ruínas passarão por um processo de estagnação da deterioração, enquanto o que não resistiu das paredes e do teto dará lugar a um esqueleto metálico e de vidro. A escolha dos materiais teve o objetivo de deixar evidente o contraste entre o original e o novo.

Pouso de Paranapiacaba será transformado em restaurante de culinária portuguesa Foto: Taba Benedicto/Estadão - 20/07/2022

A maioria das construções do bicentenário está localizada nos Caminhos do Mar, no Parque Estadual Serra do Mar, e é tombada na esfera estadual. Os monumentos foram projetados pelo arquiteto franco-argentino Victor Dubugras (o mesmo do Largo da Memória, no centro de São Paulo), com murais em azulejo do artista José Wasth Rodrigues. 

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A restauração completa custará R$ 4,25 milhões, segundo a Parquetur, concessionária responsável pelo trecho do parque, e abrange também a Calçada do Lorena, caminho de pedra dos anos 1790 percorrido por D. Pedro I horas antes de proclamar a Independência, em 1822.

Por enquanto, foram entregues o restauro do Pontilhão Raiz da Serra (junto à portaria de Cubatão), o Cruzeiro Quinhentista (localizado fora do parque), o Monumento ao Pico e o Belvedere Circular. Estão em processo para o início dos trabalhos, o Rancho da Maioridade, as ruínas e o Padrão do Lorena. Por fim, o “restaurômetro” avalia como 83% e 10% prontos, respectivamente, o Pouso de Paranapiacaba e a Calçada do Lorena. O prazo máximo da conclusão é estimado para março de 2023.

Azulejos do Pouso de Paranapiacaba Foto: Taba Benedicto/Estadão - 20/07/2022

Professor na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), o arquiteto e historiador Alex Miyoshi explica que os monumentos estão alinhados ao neocolonialismo, chamado à época de "arquitetura brasileira". "Revalorizou a cultura luso-brasileira no início do século 20, reinterpretando elementos do barroco, tais como os característicos pináculos e volutas", comenta. Segundo ele, os monumentos reúnem elementos de outros estilos, como o art nouveau, e uma exuberância de formas, cores, volumes e materiais". "Victor Dubugras, um dos grandes nomes da arquitetura brasileira, que ressente ainda de ser mais conhecido."

Caminhos do Mar terão programação temática da Independência do Brasil

O trecho do parque segue aberto para visitação autoguiada durante o restauro, com restrição de acesso no interior das edificações históricas. O funcionamento é de quarta-feira a domingo, das 8h às 17h. A entrada custa R$ 40, à venda no local e no site caminhosdomar.com.br. As portarias ficam na Rodovia SP 148, nos quilômetros 42 (São Bernardo do Campo, com estacionamento pago) e 50 (Cubatão). São oferecidos outros serviços, como transporte por van. A gestão é da Parquetur, também responsável pelo Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, desde junho de 2021 e com contrato de concessão por 30 anos, o qual prevê uma série de obrigações, como os restauros. Outra novidade recente foi a implantação de uma trilha até a Cachoeira da Torre, com cerca de 9 quilômetros de extensão (ida e volta). Para meados de agosto e setembro, é prevista uma programação temática do Bicentenário da Independência, voltada especialmente às famílias. “Temos o compromisso que entregar os nove monumentos restaurados até março do ano que vem”, garante Carlos Telecki, gestor dos Caminhos do Mar.

Azulejos do Pouso de Paranapiacaba Foto: Taba Benedicto/Estadão - 20/07/2022

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Calçada percorrida por D. Pedro horas antes da Independência também é restaurada

Parte do caminho percorrido por D. Pedro I rumo ao Ipiranga também passa por um processo de restauro. Ao todo, quatro quilômetros da chamada Calçada do Lorena, foram incluídos na obra.

O caminho é o caminho pavimentado da região e feito de pedras. Esteve em operação dos anos 1790 a 1860 e hoje faz parte de um roteiro turístico. O trajeto original era mais longo e sofreu modificações com a construção da Estrada Velha de Santos e a industrialização de Cubatão. O que restou passa em meio à Mata Atlântica, na Serra do Mar. A via também foi percorrida por D. Pedro I após passagem por São Paulo e, dias depois, na madrugada do dia da proclamação da Independência, em 1822. “Ele desceu para Santos para ver como estavam as fortalezas que guardavam o porto, já antevendo uma possível luta, como acontecia na Bahia, e aproveitou para visitar a família do José Bonifácio, que era o seu principal ministro”, explica o historiador Paulo Rezzutti, biógrafo do monarca.  “Também havia questões sobre ter tido um motim no começo de 1822, por falta de soldo, que fez com que alguns militares fossem presos. Foi meio que para marcar a presença do Estado na região”, ressalta. O historiador explica que a parada da comitiva no Ipiranga era estratégica: para trocar de montaria, das mulas (mais indicadas para percorrer subidas) por cavalos.  A expectativa da equipe de restauro é identificar a largura original, hoje parcialmente recoberta por vegetação e terra, e possíveis apoios nas bordas, como parapeitos. Para tanto, utiliza-se uma câmera térmica e são esperados trabalhos de arqueologia. Outro trecho — perdido durante anos, de dois quilômetros — foi recém-reencontrado na mata do parque, em Cubatão. A descoberta foi feita por uma expedição liderada por Jorge Cintra, pesquisador e professor do Museu do Ipiranga, entre março e abril deste ano. Ele marcou o caminho com um GPS e utilizou mapas de diferentes épocas. “Em um País com pouca memória e tão poucos monumentos preservados, essa obra de engenharia colonial possui bastante destaque e ajuda a contar ao vivo um pouco da nossa história”, avalia. Ele explica o papel da via: “tornou transitável a estrada em todas as épocas do ano, principalmente na das chuvas, facilitando o transporte de mercadorias, principalmente do açúcar, a grande riqueza da Capitania na época e, mais tarde, os inícios do ciclo do café”.  Na expedição, o pesquisador também encontrou o local onde antes havia um rancho de madeira e sapê atingido por um incêndio décadas atrás. “Não restou nada além do local. Mediante escavação, talvez se encontre algum alicerce”, analisa.

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