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Condenados passam horas na fila do Fórum da Barra Funda para manter a condicional

Tribunal de Justiça de São Paulo explica que medida que causa fila e aglomeração atende a exigência legal de apenados; os moradores da região reclamam do movimento

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Por Gonçalo Junior
Atualização:

Com um cobertor de solteiro fino e meio puído, uma garrafa térmica com leite e achocolatado e cinco pães com mortadela, o casal Bruno e Solange pediu a carona de um amigo para deixar a Zona Leste e chegar ao Fórum Criminal da Barra Funda, na zona oeste da cidade, às 2h da madrugada desta quinta-feira, 28. Depois de cumprir pena de quatro anos por dirigir um carro com a placa clonada, ele precisa ir ao fórum todo trimestre para se apresentar e manter o benefício da pena em regime aberto. Os dois deixaram o fórum às 12h20, quase dez horas depois da chegada, com a garrafa pela metade e o cobertor com marcas da poeira da calçada.

Centenas de ex-detentos como Bruno, que cumprem a pena em regime aberto ou liberdade condicional, precisam atender a essa exigência legal: o registro periódico de suas atividades sob pena de se tornarem foragidos da Justiça. Trata-se de uma imposição da Lei de Execução Penal. Para garantir o atendimento, muitos chegam de madrugada. O primeiro da fila desta quinta-feira chegou às 16h de quarta, contam ex-presidiários. Ele teria levado até colchão, que foi recolhido por parentes pela manhã.

Ex-detentos que precisam assinar a liberdade condicional costumamenfrentarfilasno Fórum Criminal da Barra Funda, zona oeste de Sao Paulo. Foto: Marcello Chello/Estadão

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Morador do Jardim Fontalis, na zona norte, Augusto, de 28 anos, tentou atendimento pelo terceiro dia seguido, sempre chegando mais cedo. Agora, chegou às 5h e conseguiu a senha 438. Deu certo. Ele cumpriu a pena de quase dois anos por roubo. No início da manhã, a fila começava na entrada da Rua José Gomes Falcão e avançava em direção à Marginal Tietê. São distribuídas entre 550 e 600 senhas por dia com atendimento a partir das 9h. De acordo com o Tribunal de Justiça de São Paulo, os dois anos de suspensão da obrigatoriedade da presença por causa da pandemia geraram as aglomerações.

A infraestrutura de atendimento é precária. Não há banheiros, bebedouros ou assentos. As pessoas ficam sentadas ou de pé na calçada - algumas levam seu próprio banco. Ou, quem chega de madrugada, leva seu cobertor e colchão para pernoitar em cima de tapetes ou papelões. Para ir ao banheiro, alguns recorrem a uma padaria na esquina da Av. Marquês de São Vicente, mas o acesso está cada vez mais restrito.

As opções de alimentação se resumem aos carrinhos dos vendedores ambulantes que ocupam o outro lado da calçada. O item mais vendido, segundo o comerciante autônomo Vanderlei Santos, é saquinho de amendoim: um é R$ 3, dois são R$ 5. Mas muitos levam seus próprios lanches.

A ida ao Fórum é um momento delicado para os ex-detentos. Muitos não relatam o cumprimento da pena ao empregador (quando há emprego fixo) com receio de perder a chance. Com isso, eles têm dificuldade para justificar as ausências mensais ou trimestrais – a frequência varia de acordo com o crime cometido e a pena aplicada. Nesse contexto, conceder entrevistas também é uma questão incômoda. Muitos omitem o nome, evitam fotografias ou detalhes da vida pessoal. 

O trabalhador da área de reciclagem Diego Rodrigues, o único que se identificou, aborda o que está nos silêncios do sentenciados. “A gente errou, já pagou pelo erro perante a sociedade, mas a gente continua marcado. Ainda tem muito preconceito. É uma calamidade o que está acontecendo. Esse atendimento é uma opressão”, diz o ex-detento que cumpriu pena de dez anos por latrocínio e hoje mora em São Mateus, zona leste.

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Para evitar as aglomerações, Diego sugere que os ex-detentos sejam encaminhados aos fóruns de suas respectivas regiões. É também o que pensa Bernardo, que cumpriu dois anos de prisão, mas prefere não mencionar a razão. “Eu saí do Butantã, só com o dinheiro da passagem. Não vejo problema em ir ao fórum, mas poderia ser um local perto do nosso endereço”, afirma.

Para evitar as aglomerações, ex-detentos sugerem que sejam encaminhados aos fóruns de suas respectivas regiões. Foto: Marcello Chello/Estadão

Filas mudam a rotina dos moradores

A rua José Gomes Falcão é uma via importante por causa da presença do Fórum Trabalhista, na esquina da avenida Marquês de São Vicente, e também pela ligação com a Marginal Tietê. Ela abriga dois condomínios de alto padrão, além de uma escola.

Desde o mês de abril, quando os comparecimentos foram retomados no fórum, as filas mudaram a rotina da vizinhança. Para quem vive ou trabalha ali, as aglomerações trazem problemas para a circulação de veículos e pedestres. Como a fila avança pela rua, a entrada e saída de veículos dos condomínios também fica comprometida. Um dos prédios, que possui 200 apartamentos, relata que são mais de 700 veículos entrando e saindo diariamente. Há, portanto, risco de atropelamento.

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“Não há mais calçada. De um lado, existe a fila para atendimento; do outro, os vendedores ambulantes”, diz o síndico de um condomínio. “É uma situação desumana. O problema não são as pessoas fazendo aglomerações, mas a morosidade no atendimento do fórum”, reclama.

Nesse contexto, um condomínio encaminhou um ofício para o fórum alertando para a necessidade de melhoria no fluxo de atendimento para evitar aglomerações. Moradores afirmam que fizeram denúncias para o canal 156 da Prefeitura de São Paulo, mas elas ainda não tiveram resposta. Por outro lado, não há registros de furtos, roubos ou agressões relacionados às filas nas proximidades do fórum. 

Alguns dos ex-detentos chegam ao Fórum demadrugada para conseguir uma senha. Foto: Marcello Chello/Estadão

Fluxo ficou represado por dois anos, aponta TJ

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O Tribunal de Justiça de São Paulo informa que os sentenciados que foram beneficiados com o cumprimento de pena em regime aberto, livramento condicional ou suspensão condicional da pena (sursis) devem comparecer em juízo para justificar suas atividades. “Esses comparecimentos ficaram suspensos por dois anos, em razão da pandemia. Com isso, os sentenciados com o benefício só puderam comparecer neste ano, o que ocasionou um grande número de pessoas que buscam atendimento no Complexo Criminal da Barra Funda”, diz o órgão em nota.

O Tribunal informa a adoção de um cronograma que segue a letra inicial dos nomes dos sentenciados “na intenção de evitar aglomerações na unidade, que é o maior setor de albergados do país”. O órgão também cita a presença de familiares. “A recomendação é que apenas o sentenciado compareça, mas muitos estão acompanhados de familiares, o que aumenta as aglomerações”.

Para contornar a situação, o Tribunal de Justiça de São Paulo estuda a elaboração de um novo cronograma, que em breve será divulgado, mas “destaca que nenhum benefício será revogado em prejuízo das pessoas que compareceram”, diz a nota. “Àqueles que não conseguiram atendimento no período estipulado, a orientação é que aguardem a publicação do novo cronograma, que será divulgado no site e demais canais de comunicação do TJSP”.

A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal das Subprefeituras (SMSUB), informa que faz a varrição e coleta de lixo diariamente, na região do Fórum Criminal da Barra Funda, no período diurno. A Subprefeitura Lapa agendou uma fiscalização para os comércios ambulantes no local supracitado. A data não é divulgada para não atrapalhar os resultados da ação.

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