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Como é que fica?

Por Humberto Werneck
Atualização:

Já não bastassem as antigas, Dona Alzira tem uma nova dúvida: se um padre deixa a batina, ou "esse terninho que em má hora eles deram de usar", como é que fica a situação de quem se casou com ele? Quer dizer, trata ela de explicar melhor: como é que fica a situação do pessoal cujos casamentos esse padre celebrou? O matrimônio continua valendo? Será que não prescreve, feito os crimes, sai da validade, como os iogurtes, ou cai em exercício findo, que nem as dívidas? Muito religiosa, como sabemos, esta não é para dona Alzira uma dúvida ociosa, uma questão gratuita como as que são propostas aos participantes de certos jogos idiotas na televisão, aquela bobajada que a gente vê até o fim para comprovar uma vez mais que tem muito lixo neste mundo. De jeito nenhum!, é coisa muito séria o que ela anda pensando a respeito das consequências dos desatinos dos padres que se desbatinam. Mas não vá você pensar que dona Alzira caraminhola em causa própria, na esperança de que em alguma parte deste mundo tenha se escafedido da Igreja o sacerdote que fez seu casamento com o Valter. Casamento com o Valter... Ela não gosta nem de pensar naquele triste momento de sua tristíssima vida. "Se ao menos eu pudesse me matar um pouco", costuma repetir, suspirosa, "e depois voltar..." Logo se refaz, indignada: se alguém nessa história tiver que morrer, por que haveria de ser ela? Ah, não! - e imediatamente rebate, dá a volta por cima no desacoroçoamento existencial:- Bobo é quem morre!Dona Alzira, isto talvez você não saiba, é uma criatura das frases. O fato é que ganhou fama de frasista, por enquanto apenas no seio da família. (A filha tem horror, se arrepia toda quando a mãe vem com essa expressão, e, em nome da elegância da linguagem, esconjura a pereba verbal: mastectomia já!). Outras frases da dona Alzira que se tornaram célebres no úbere familiar, todas convenientemente providas de ponto de exclamação, pois em matéria de máximas é preciso carregar na ênfase:- Tudo demais é muito! - O exagero nunca é demais!- Tudo o que é pouco sobra!Sabedoria, já se vê, é o que não lhe falta. Repare, por exemplo, nesta última pérola, e se lembre do que acontece quando vem à mesa uma porção diminuta de algum alimento. Boa parte voltará para a cozinha, intocada, pois os comensais, diante da pequenez, na certa vão fazer cerimônia. A menos que se trate de batatas cozidas e que esteja à mesa o professor Modesto, mas isso é uma história que não vem ao caso, fica para outra vez. Não custa botar em outras palavras a pílula de sabedoria de dona Alzira para uso de cozinheiras e donas de casa: fez pouco, sobrou.Um dia, meditando sobre esse seu achado, nossa amiga se perguntou se ele não aplicaria, também, a realidades extraculinárias. Ainda não se respondeu, mas anda desconfiada de que a frase talvez se aplique, sim, a coisas de sua própria vida, como ter estudado piano, francês e bordado - para acabar casada com um bronco como o Valter, criatura cuja sensibilidade, se chega a existir, é tão rombuda que não lhe permite apreciar as prendas da esposa. Tudo, nele, está canalizado para a carne, para a concupiscência! Aliás, hoje nem tanto; falar a verdade, hoje em dia quase nada, ou nada mesmo. Mas no passado... O simples olhar do Valter, olhar molhado, vacum, ateava nela um fogaréu a um tempo imperioso e repulsivo, precipitando-a numa peleja em que se via puxada com igual força para lados opostos. Sob os faróis despudorados que a devassavam, batia em dona Alzira, então apenas Alzira, a mortificante consciência de estar, dentro da roupa, inteiramente nua. Sensualidade tão escancarada que ela, para não sucumbir ao turbilhão pecaminoso, se agarrava a uma frase, das primeiras que bolou: - Certas pessoas deveriam ter um pouco de complexo! Mas era dizer e se sentir arrastada, querendo, não querendo, para o outro lado, e aí... E aí é melhor parar, diz dona Alzira, agarrando-se à boia de um novo tema: como é que fica o casamento de quem se casou com padre que depois deixou a batina?

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