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Com pandemia, cai procura por atendimento às mulheres vítimas de violência em SP

Em período em que se calcula aumento dos crimes contra mulheres, centros de acolhecimento às vítimas na capital tiveram uma redução pela metade no número de atendimentos no início do isolamento social

Por Felipe Resk
Atualização:

SÃO PAULO - Foram mais de nove anos de relacionamento, duas traições descobertas, incontáveis xingamentos ouvidos e ao menos dois episódios de agressão física até que Vanessa (nome fictício), enfim, conseguiu encontrar ajuda. Em um dos Centros de Cidadania da Mulher (CCM), na cidade de São Paulo, ela se reconheceu na história de outras vítimas de violência doméstica e recebeu apoio para reconstruir a própria narrativa: “Se eu soubesse que a vida podia ser tão boa, tinha me separado antes”.

CCMs, Centros de Referência da Mulher (CRMs) e a Casa da Mulher Brasileira, inaugurada no ano passado, são considerados portas de entrada para acolher vítimas de violência e, se necessário, direcioná-las para outros equipamentos, a exemplo dos abrigos de proteção. Embora tenham permanecido abertos durante a quarentena provocada pela pandemia de coronavírus, quando especialistas previam aumento de crimes contra mulheres, dados da Prefeitura, obtidos pelo Estadão, indicam que menos “Vanessas” acabaram chegando aos serviços municipais neste ano.

Vítima de agressões e xingamentos por parte do marido, Vanessa encontrou ajuda em um dos Centros de Cidadania da Mulher (CCM) da capital Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

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Hoje, só 42% das 180 vagas em abrigos municipais estão ocupadas. Com endereços sigilosos, esses locais são preparados para receber mulheres e seus filhos que sofrem agressão, ameaças e estão sob risco de morrer. Nestes e em outros equipamentos da rede, são ofertadas para as mulheres uma série de atividades, como oficinas, rodas de conversa, sessões com psicólogos ou ações de independência financeira.

De acordo com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, o número de atendimentos gerais, que apresentava tendência de alta desde o ano passado, despencou de repente com o isolamento social. Em março, haviam sido 2.685 atendimentos. Em abril, foram 1.002. Mesmo com crescimento gradual nos meses seguintes, o índice chegou a 2.026 em agosto, o dado mais recente, ainda ficando abaixo do patamar do início do ano.

Para a secretária municipal Cláudia Carletto, titular da pasta, a queda brusca nos atendimentos seria consequência direta da quarentena. “Esse impacto era um tanto natural, tendo em vista que naquele momento, por causa do distanciamento social, foi pedido para todo mundo ficar em casa.” 

Cláudia afirma que, no contexto de pandemia, a Prefeitura investiu em alternativas para tentar chegar às vítimas de violência, muitas delas isoladas em casa junto com o agressor. Com o mote #SeguimosPerto, também houve campanha e divulgação de contatos de centros de referência.

“Qualificamos atendentes do 156 para receber denúncias, identificar situações mais violentas e fazer a articulação com a Guarda Civil, para garantir a segurança da mulher”, diz a secretária. “São Paulo tem a rede de atendimento mais robusta do Brasil. A gente tem condições de receber toda mulher que chegar.” 

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Em maio, o prefeito Bruno Covas (PSDB) sancionou lei que autoriza o poder público a pagar leitos de hotéis a vítimas de violência doméstica. Segundo a pasta, 149 mulheres recebem atualmente o auxílio da Prefeitura.

Na semana passada, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou que o País registrou 648 feminicídios no primeiro semestre, ou 1,9% a mais do que no ano passado. Só no Estado de São Paulo foram 88 casos – alta de 3,5%.

Entretanto, todos os outros indicadores de violência contra a mulher (lesão corporal, ameaça, estupro) tiveram queda de notificações no Brasil. Para os pesquisadores, o provável é que, em vez de significar recuo desses crimes, as vítimas encontraram mais dificuldade para registrar denúncia e receber socorro na pandemia.

“Já ficou claro que o confinamento doméstico aumentou a violência contra as mulheres. Se mesmo assim o número de atendimentos caiu é porque, entre a vítima conseguir fazer a denúncia e ser acolhida, alguma coisa está falhando”, afirma a advogada Luiza Nagib Eluf, ex-secretária nacional dos direitos da cidadania do Ministério da Justiça. “Falta a mulher saber que existe o abrigo e que alguém vai buscá-la e protegê-la. Ela não sabe o endereço. Ou o poder público faz o serviço completo ou não adianta.”

Recomeço

Vanessa relata que havia acabado de decidir pela separação, quando lembrou que havia um CCM perto de casa e decidiu passar no equipamento. Era 2018.

“Eu não entendia que era vítima de violência doméstica. Me sentia meio perdida, sozinha e sem autoestima. Fui na esperança de encontrar algum tipo de ajuda, mas nem sabia direito o que estava buscando”, diz. “Assim que cheguei, pararam para me ouvir. Não me senti julgada ou constrangida. Já na primeira conversa, muita coisa que estava acontecendo na minha vida foi se esclarecendo.”

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Ela conta que o então marido havia sido seu primeiro namorado. Ela tinha 18 anos no início da relação. A pedido dele, Vanessa interrompeu os estudos, e o casal abriu um comércio na região, onde ela passou a dobrar o expediente com os afazeres domésticos. Nada do que fazia era suficiente. Com o tempo, as reclamações, que eram sutis no começo, viraram gritos e xingamentos. “Ele só parava quando eu começava a chorar.”

O marido se negava a frequentar eventos da família e de amigos de Vanessa, que se sentia cada vez mais presa e solitária. Após o fechamento da loja, foi proibida de trabalhar fora e o casal se mudou para um sítio, onde ela, mesmo sem querer, tinha de cuidar sozinha de um cavalo, cinco gansos, seis cachorros e cerca de 80 galinhas. “Tinha uma chocadeira e os ovos precisavam ficar 21 dias na luz. Quando a energia acabava, eu corria para ligar na bateria do carro. Podia ser de madrugada, debaixo de chuva ou no frio. Era bem estressante.”

“Quando ele chegava em casa, eu também tinha de abrir o portão. Ele me olhava de um jeito que eu sentia um arrepio nas costas. Depois ia entrando na casa, olhando para os cantos, passando a mão nos móveis para ver se havia poeira. Qualquer coisa era motivo de briga”, descreve. A violência escalonou e Vanessa chegou a ser fisicamente agredida ao menos duas vezes. Na primeira, não teve coragem de denunciar.

Passou a sentir medo. “Nessas horas, eu pensava mais em me machucar do que em fazer algo contra ele. Cheguei a orar para Deus me levar embora. Não comia mais direito. Parei de tomar remédio quando ficava doente”, conta. “Até o dia que eu decidi ir embora. Minha família e meus amigos me acolheram imediatamente.”

Hoje, Vanessa tem uma medida protetiva contra o agressor. Também está namorando e abriu um salão de beleza, que lhe garante independência financeira. “Às vezes, eu me pego revoltada por não ter tomado essa atitude antes”, afirma.

“No relacionamento, acontece uma coisa que a gente acha que é boba, não dá importância, mas é o começo de tudo. Depois acontece de novo, e de novo, e de novo, quando vai ver você está no buraco. Espero que outras mulheres que passam por isso percebam que está errado e procurem ajuda. Quando eu busquei, não me arrependi.”

Onde procurar ajuda

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Casa da Mulher Brasileira: Rua Vieira Ravasco, 26 – Cambuci

Casa Eliane de Grammont: Rua Dr. Bacelar, 20 – Vila Clementino

CRM 25 de Março: Rua Líbero Badaró, 137, 4º andar – Centro

Casa Brasilândia: Rua Sílvio Bueno Peruche, 538 – Brasilândia

CRM Maria de Lourdes Rodrigues: Rua Luiz Fonseca Galvão, 145 – Capão Redondo

CCM Parelheiros: Rua Terezinha do Prado Oliveira, 119

CCM Santo Amaro: Praça Salim Farah Maluf, s/n

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CCM Itaquera: Rua Ibiajara, 495 – Itaquera

CCM Capela do Socorro: Rua Professor Oscar Barreto Filho, 350 – Grajaú

CCM Perus: Rua Joaquim Antônio Arruda, 74