Cinzas do vício

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Ameacei contar, dois domingos atrás, como foi que cortei, sem um pingo de heroísmo, meus três maços diários de cigarro, no remoto ano 81 do século 20. Mas tiene muchas ramas el árbol de mi conversación (esta é do Pablo Neruda), tantas que, desgarrado, acabei não desembuchando um episódio que pode ser assim resumido: parei de fumar porque fumei demais. Enjoei. Nos últimos tempos, acendia um cigarro sem ver que outro ardia no cinzeiro. Como esses amores vencidos que por inércia vão remanescendo, aquilo já não tinha gosto. De manhã, adiava o instante de acender o primeiro, por conhecer de sobra o mal-estar que me traria; a vontade era começar pelo segundo. Num final de fechamento na redação da Veja (na época, uma clínica de envelhecimento precoce, hoje não sei), um colega me pediu que invertesse a posição de nossas mesas, pois minha fumaça ia direto para ele. A vergonha de sentir-me chaminé coincidiu com uma gripe - e no dia seguinte me dei conta de que, pela primeira vez em duas décadas, tinha atravessado 24 horas sem cigarro. O mesmo no dia seguinte - e aí virou projeto o que não fora intencional. Duas semanas depois, comecei a ouvir um zumbido e fiquei ligeiramente burro. O zumbido passou, mas há quem diga que da segunda ocorrência nunca me refiz. E foi tudo. Sofrimento, bem pouco. Alívio. Não sei como faria hoje para suportar a privação do fumo numa viagem aérea. Venho do tempo em que a bordo se pitava à vontade. Depois criaram um setor para não fumantes, mas não conseguiram convencer a fumaça a respeitar os limites da sesmaria onde era produzida. Saudade? Nenhuma. Não precisei dizer como o poeta Mário Quintana, quando o pilharam de cigarro aceso na Serra Gaúcha: "Parei de fumar em Porto Alegre, mas aqui ninguém sabe disso..." Algum tempo atrás, o baque de saber que me ficaram "traços de enfisema". Mas 30 anos depois os pulmões não estariam limpos? Você parou de se fazer mal, sentenciou o médico, porém o mal está feito. Só espero que fique nisso a revanche de meus bofes tão rudemente defumados. Curioso não ter virado militante do antitabagismo. Não suporto a fumaça, e jamais esquecerei o que foi para mim, já abstêmio, o primeiro beijo (me perdoe, você aí) em boca de fumante. Também não esqueço a neura que não me permitia entrar em casa sem um maço fechado - e ainda assim, em tantas madrugadas, me vi desentortando despojos no cinzeiro. Mas me chateiam os tabacochatos. Gostei demais de um cigarrinho para que vá agora desancá-lo. Cigarrinho de verdade - e me rejubilo por haver escapado aos "baixos teores", dos quais dizia meu amigo João Vitor: é como dançar com irmã. Melhor que isso, escapei do "cigarro eletrônico", esquisitice que, sem fumo nem fogo, está para o tabagismo como o vibrador para o sexo. Não me rendi a perfumarias como o cigarro mentolado - e não por ter corrido o boato de que fazia esmorecer aquele pito com uma consoante a mais. "Imagina se eu não fumasse!", jactava-se um Don Juan amigo meu - ao qual parece nunca ter faltado apetite, para a política ao menos, pois o fumante de Cônsul acabou chanceler. Passei ao largo, também, de bobagens tabagísticas como o Capri, pitoco tão curto que quase já era guimba. Fui fiel ao Luís XV, e lamentei o desaparecimento da versão original, sem filtro. Não faz diferença, eu sei, mas gostaria que meu último cigarro, consumido na redação da Veja, tivesse sido um desses. Mais: que existisse então o projeto The last cigarette portraits, do fotógrafo paulistano Claudio Pepper. Dê uma espiada na internet: retratos de gente a baforar a derradeira tragada, naquilo que, segundo o ex-fumante Claudio, constitui "um dos momentos de maior prazer que alguém pode ter". Você escolhe o cenário, o figurino, a pose. Por que não dar esse passo "de uma forma inesquecível, quase cerimoniosa, premeditada, pontual", propõe o retratista, "para que não reste saudade, mas uma lembrança muito intensa?" Será que o Claudio aceita repetentes?

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