Bloco leva marchinhas e alegria para a Cracolândia

Cordão do Triunfo percorreu ruas marcadas pela degradação humana

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Por Caio do Valle
Atualização:

SÃO PAULO - É raro a alegria tomar conta da Cracolândia, no centro de São Paulo. Essa verdade se evidenciou na tarde deste domingo, 2, no rosto de dezenas de pessoas que moram na região e, das janelas de seus apartamentos, espiaram o samba passar. Por breves minutos, o samba do Cordão do Triunfo passou, arrastando cores, música boa e algumas centenas de foliões por ruas como General Osório e Santa Ifigênia, acostumadas ao vazio cinzento dos domingos à tarde. E mais ainda às agruras dos viciados que perambulam por ali.

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Crianças, velhinhos, homenzarrões. Por um instante irmanados pela experiência da folia lá embaixo, todos eles se debruçaram nos parapeitos dos prédios de fachadas decadentes que povoam as imediações da Estação Júlio Prestes e acompanharam o carro de som se deslocar, devagarinho, irradiando os clássicos “Bandeira branca”, “Trem das onze” e “Canta canta, minha gente”. Alguns se arriscaram e aceitaram o convite, cantando. 

A maioria, contudo, exibia na compleição um misto de perplexidade e animação. Uma alegria desconfiada e contida, como se tudo aquilo fizesse parte de outro mundo, bem distante da realidade de um bairro permanentemente ajustado à degradação humana. Para registrar momento tão singular, muitos sacaram seus celulares. Mas Sueli Santos, de 34 anos, quis um pouco mais. Decidiu pegar a filha, Ana Clara, de 3, e ir sambar.

“Difícil demais ter esse tipo de coisa boa aqui, então temos que aproveitar”, disse a doméstica, que vive há poucos anos na Rua dos Andradas e neste domingo desfilou cantando, desinibida, “Será que ele é”, entre outras marchinhas carnavalescas.

Do coração da antiga Boca do Lixo, a Rua do Triunfo, o bloco prosseguiu até o famoso encontro da Ipiranga com a São João. Patrocinado pela Cia. Pessoal do Faroeste, grupo teatral sediado na região, o Cordão do Triunfo marchou pelo segundo ano seguido, atraindo cerca de 500 foliões, conforme os organizadores.

“Veja os prédios da Sala São Paulo, da Estação Pinacoteca... São bonitos, mas de certa forma representam uma presença blindada do Estado. As pessoas vão lá de carro e não experimentam a realidade do entorno. Queremos trazê-las para o meio dos ‘noias’ e mostrá-las esse aspecto da cidade”, afirmou o diretor de vídeo da companhia, Dario José, de 39 anos.

De fato, alguns viciados no crack acompanharam o bloco, tentando se adaptar ao agito. Uma das mais animadas do carro de som, Ana Cristina Pereira de Deus, de 42 anos, já deu um passo no sentido da recuperação. Sem fumar pedras da droga há cerca de dois meses, ela participa do programa Braços Abertos, lançado pela Prefeitura em janeiro, faxinando a tenda do projeto, montada na Rua Helvétia, por uma bolsa-auxílio de R$ 15 diários.

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Contou ter trabalhado durante um mês como copeira do gabinete do prefeito Fernando Haddad (PT), mas desistiu do posto. Neste domingo, assumiu com afinco a função de tocadora de pandeiro, garantindo batucadas do início ao fim do rolê do bloco, que durou pouco menos de uma hora e meia. Ao lado dela, Tina Galvão, de 70 anos, coordenadora do movimento Aquele Abraço, que originou o projeto municipal de acolhida de viciados, foi prestigiar a animação na área, que conhece bem. “Porque a expressão máxima do carnaval é a participação popular.”

Tendo como rainha da bateria a atriz Mel Lisboa, o bloco atraiu a atenção mesmo de quem pouco entende a cultura local. Caso do senegalês Sette Sall, de 26 anos, que imigrou há quatro meses para São Paulo, onde trabalha como motorista. Apesar das dificuldades com o português, achou graça na animação dos foliões e decidiu filmá-la com o celular, enquanto o bloco seguia pela Avenida São João. “É muito bonito, lá no meu país temos festas parecidas com essa na rua.”

Com humor, o cordão cantou “Xô Satanás” ao passar diante da sede da Igreja Internacional da Graça de Deus, na São João, já no retorno para a Rua do Triunfo. Na calçada, alguns fiéis sinalizaram não ter gostado da provocação. Já o centro da cidade parece clamar por mais pirraças do gênero.

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