16 de maio de 2015 | 03h00
A química analítica tem ajudado os arqueólogos. Em 1996, analisando restos secos no interior de potes da época neolítica, foi possível identificar uma série de moléculas produzidas durante a fermentação de uvas. Isso permitiu aos cientistas concluir que 7 mil anos atrás nossos ancestrais já produziam e apreciavam algo semelhante a um bom Bordeaux. Em 1815, um lote de garrafas que viajava da França para a Rússia acabou no fundo do mar da Finlândia. Mergulhadores descobriram as garrafas em 2010. Beberam uma delas, bem preservada pelas baixas temperaturas e pela escuridão do Mar Báltico. Era champanhe. E assim, combinando as cartas de Madame Clicquot com modernos métodos da química analítica, foi possível determinar como era a produção de champanhe Veuve Clicquot por volta de 1811. Mas essas são outras histórias.
Esses mesmos métodos foram usados para analisar o conteúdo das ânforas de Favignana. A primeira descoberta foi que o líquido continha ácido tartárico, o que sugeria a presença do suco de alguma fruta, provavelmente uva. Mas a alta concentração de ácido ascórbico, muito maior do que a existente nas uvas, sugeria que o líquido também continha uma fruta cítrica rica em vitamina C, talvez suco de laranja. Usando outro equipamento foi possível detectar etanol em concentrações próximas a 3%, um terço do encontrado nos vinhos modernos. Isso indicava que a fruta havia sido fermentada. Além do etanol, foram encontrados outros compostos típicos da fermentação de uvas, como o metanol e o aceto-aldeído.
Emoji, presente do Japão
Até aqui, tudo bem, o líquido parecia ser uma mistura de vinho diluído com suco de laranja. Mas por que uma mistura tão simples seria guardada em ânforas tão preciosas? A resposta veio da análise dos íons presentes no líquido. A concentração de chumbo era alta, 20 vezes o limite permitido atualmente. Nessas concentrações o chumbo é suficientemente tóxico para evitar o crescimento de bactérias e serve como preservativo. Aí os historiadores entraram em campo.
Era costume entre os romanos macerar um pouco de vinho em potes de chumbo, de modo a produzir sais de chumbo. Esses sais, além de preservar a poção, seriam benéficos à saúde. Assim pensavam os romanos. Foi só muito mais tarde que se descobriu que o chumbo é extremamente tóxico.
Animados, os cientistas foram investigar se os antioxidantes presentes no vinho, como os polifenóis, estavam presentes na bebida. Tiro e queda, lá estavam eles, em quantidades menores que as presentes nos vinhos modernos. E mais que isso, os cientistas foram capazes de demonstrar que o líquido, quando testado em células humanas, ainda preservava suas propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias.
A conclusão é inescapável. As ânforas encontradas em Favignana faziam parte de um lote de medicamentos produzidos entre 1300 e 1400, em plena Idade Média. Produzidos não sabemos onde, estavam sendo transportados para não sabemos onde. Sem dúvida uma mercadoria valiosa. O interessante é que, excluindo o chumbo, essa poção curativa era rica em vitamina C, antioxidantes, e outros compostos que até hoje se acredita serem benéficos para a saúde humana.
Os cientistas não resistiram à tentação de beber um pouco do medicamento: “A cor é branca com tons de dourado, aroma de uvas secas e couro, vinho aromático, ácido, adstringente, um pouco salgado. O gosto é forte e persistente...”. Foi nesse ponto da degustação que tiveram de parar. Já haviam bebido o máximo de chumbo permitido pela legislação italiana.
MAIS INFORMAÇÕES:
LONG-LASTING ANTIOXIDANT ACTIVITY IN A 600-YEAR-OLD FERMENTED FRUIT JUICE. ANTIOXIDANT & REDOX SIGNALING VOL. 6 PAG. 934
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