Alguma coisa surpreendente

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Por Humberto Werneck
Atualização:

O camareiro me puxou para um canto, olhou em torno e, excitadíssimo, sussurrou:- Morreu uma americana velha!Tínhamos tido um primeiro papo, no dia do embarque em Vancouver, ocasião em que, farejando simpatia, puxei pela língua daquele indonésio falante e sorridente. Expliquei que estava ali como repórter, e que para escrever um relato menos convencional precisaria de boas histórias de bordo, ocorridas de preferência durante o cruzeiro que estávamos iniciando rumo ao Alasca. Farejando gorjeta, o moço piscou com ar maroto de deixa-comigo. Pensei que fosse ouvir relatos divertidos, eventualmente dramáticos, e também, por que não?, picantes, na suposição de que, não tendo terra firme sob os pés por longos sete dias, muitos dos 1.500 passageiros do M/S Noordam, num festivo assanhamento, haveriam de liberar desejos e fantasias mantidos sob rédea curta. Nem remotamente imaginei que a primeira entrega, dois dias mais tarde, seria aquela, sensacional, de um óbito marítimo.Tratei de checar a história com o diretor do cruzeiro, que até então não dera muita bola para o jornalista brasileiro. O homem ficou lívido quando lhe perguntei por alguém que na noite anterior teria batido as pantufas enquanto singrávamos num mar on the rocks, coalhado de blocos de gelo. O diretor saltou de seu modelito blasé e correu para fechar a porta: como é que eu tinha aquela informação top secret? Não entreguei a fonte, é claro - em vez disso, pedi detalhes. Meu interlocutor se desmanchou em explicações. Com tanta gente idosa a bordo, para mais de mil, era considerável a possibilidade estatística de que alguém, tendo entrado com seus próprios pés, viesse a desembarcar na horizontal. Quanto a isso, nenhuma dúvida: não se poderia imaginar cruzeiro mais geriátrico; vendo o mar de cabelos brancos, não seria descabido prever que para uns tantos aquela perigava ser, em mais de um sentido, a última viagem.Não cheguei a perguntar o que se usava fazer num transatlântico quando alguém morria; não me passou pela cabeça o ritual, visto em velhos filmes, de cadáveres envoltos em lençóis sendo lançados ao mar. Em meio a aflitos pedidos de sigilo, o diretor do cruzeiro me explicou que a defunta tinha sido acondicionada num caixão - sim, havia sempre um estoque a bordo - e recolhida a uma câmara refrigerada, para ser desembarcada na próxima escala, tudo na mais inteiriça discrição, de modo a que um espetáculo fúnebre não viesse pôr a pique a animação dos passageiros. Ele não chegou a bradar the show must go on!, mas o espírito da palavra de ordem transpareceu na sequência da conversa: eu estava sendo bem tratado? A comida era do meu agrado? E o camarote, suficientemente confortável e acolhedor? Não deixasse de lhe relatar o menor contratempo, nem de trazer dúvidas e pedidos de informação, pois estava ali para me atender! Tanto estava que a partir daquele momento me cumulou de atenções e salamaleques, passando a me tratar não mais como reles brazilian journalist, mas como international travel writer.Quando descemos em Sitka, ele me tomou pelo braço: o que eu gostaria de fazer naquela última escala? Não sei que irresponsável antipatia baixou em mim: ah, queria ver alguma coisa surpreendente... O camarada se pôs pensativo antes de pedir que esperasse ali no cais. Quinze minutos mais tarde, vi chegar algo que não poderia estar mais deslocado na paisagem: uma enorme, interminável limusine branca, da qual saltou um rapaz de calças brancas e colete de veludo vermelho cravejado de buttons. Mr. Werneck? E lá fui eu, rumo a destino do qual só me daria conta quando a limusine me depositou na entrada de um hospital de águias. Sim, um hospital dedicado exclusivamente à ave-símbolo dos Estados Unidos. Por mais de hora, tive que percorrer galpões nos quais, empoleiradas ou voando de lá para cá, rente à minha cabeça, havia dezenas de águias, convalescentes mas nem por isso menos ameaçadoras. Bem feito!, recriminava-se o apavorado international travel writer, quem mandou pedir pra ver alguma coisa surpreendente?

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