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Ah, o linguajar do pessoal...

Por Humberto Werneck
Atualização:

A Solange está muito decepcionada com a nossa classe política. Nada a ver com as maracutaias que congestionam o noticiário, para ela meras perversões consuetudinárias (acho que agora você reconheceu a minha prima que adora falar difícil) da vida pública brasileira. O que a decepciona - mais: o que a deixa fora de si, a pique de perder a tramontana, desejosa de ir dar às de vila-diogo - é a indigência do linguajar desse pessoal. Na semana passada, ela esperou, impaciente, pela posse do Celso Amorim no Ministério da Defesa, certa de que o discurso de Sua Excelência, diplomata e poliglota, viria cravejado de finas gemas da língua portuguesa. Mas o que se ouviu, avalia, foi uma fala pedestre; nenhum voo mais alto, digno de nossa Aeronáutica, ou qualquer arrancada impetuosa no mar encapelado da retórica, à altura dos feitos da Marinha brasileira; tudo rasteiro, compara a Solange, como o arrastado avanço da mais lerda Infantaria. A prima se pergunta se o Amorim não seria vítima das más companhias, no caso a de Lula, cuja cultura, a seu ver escassamente mobiliada, impôs à nação oito anos de penúria vocabular, além de constrangedoras infrações gramaticais.Pondero à Solange que o desempenho do pessoal com bom nível de escolaridade não tem sido muito melhor do que o de Lula. Ela concorda, quer dizer, anui, aquiesce - e até prodigaliza uma ilustração: a Dilma, que tem diploma universitário, não nos veio outro dia, para adjetivar o Brasil, com um "funhanhado"? Fosse só a presidenta - que, afinal, ocupada com a militância clandestina, talvez não tenha podido frequentar amiúde o dicionário -, mas não: a Solange menciona o próprio Fernando Henrique, empencado de títulos e livros e ainda assim capaz de nos brindar com aquele deplorável "nhenhenhém". É curioso, comenta, que FHC, com muito mais bibliografia que seus adversários, em geral recorra menos a palavras rebuscadas do que eles. Verdade que certa vez sacou um "bazófia" para referir-se à fanfarrice de alguns opositores, mas seus uppercuts verbais típicos sempre estiveram mais na linha do tal "nhenhenhém" - expressão aliás aparentada, em sua nasalidade, com o "funhanhado" da Dilma. Vai ver que é por isso, arrisco eu, que a presidenta fez uns rapapés nos 80 anos do FHC. Não é só por ser mineira que a Solange anda saudosa do Itamar. Mais exatamente, do topete retórico do finado presidente, sobretudo quando se eriçava para hostilizar o ex-ministro que o sucedeu no Planalto. "Anfótero!", invectivou ele, então governador de Minas, quando o presidente FHC desembarcou em seus domínios para visitar as vítimas de uma inundação. Não é descabido imaginar o ex-professor da USP numa subreptícia consulta ao dicionário para saber que seu antecessor se referia a quem reúna em si qualidades opostas. Quais, no caso? Itamar não esclareceu. Como não viesse troco, disparou mais um de seus letais pães de queijo vocabulares: "O presidente é um hotentote!" - e a nação foi assim apresentada a uma das tribos mais primitivas da África. Será que o Itamar embutiu no insulto uma alusão à autoproclamada mulatice de FHC - que, como se sabe, admitiu ter "um pé na cozinha" (e outro, acrescentou o jornalista Marcos Sá Corrêa, num elegante mocassim italiano)?A turma que aí está, deplora a Solange, não engraxa as botas do Leonel Brizola, que desencavou um "contubérnio" - convivência, camaradagem, mas também mancebia, concubinato, amigação - para rotular o saco de gatos de uma aliança governista. Ou mesmo do Collor, que chamou o Ulysses Guimarães de "bonifrate", reles fantoche. A Solange tem no coração e no gogó uma lista suprapartidária de políticos dados a esgrimir palavras. Nela sobressai Getúlio Vargas, que, adepto de uma oratória florida, embalada em voz tremelicante, meteu um "obstaculizar" na carta-testamento com que saiu da vida para entrar na História. E também Jânio Quadros, a quem se atribui o célebre "fi-lo porque qui-lo"; se de fato o disse, terá renunciado também ao bom Português, disciplina de que foi professor, já que o certo, ensina a Solange, é "fi-lo porque o quis". Autoridade para corrigir o Jânio não falta à prima, certeira no uso não só do fi-lo como do fê-lo. O que ela não usa, ao menos em público, é fá-lo.

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