A leitura de mentes

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Por Fernando Reinach
Atualização:

A bola passa perto da trave. Na tela a face de desespero. O atacante põe a mão na cabeça. Os lábios se movem e, sem ouvir um único som, você ouve: "p... que pariu". Observando o movimento dos lábios é possível "ouvir" seu desabafo. Esta habilidade, que todos temos de forma rudimentar, algumas pessoas desenvolvem ao máximo. É por isso que jogadores, treinadores e políticos cobrem a boca ao conversarem na frente das câmaras. Mas existe uma outra capacidade, similar à leitura labial, que todos nós possuímos e que quase não nos damos conta. É a capacidade de ler a mente de outros seres humanos e de criarmos uma imagem do que se passa na mente do outro. Nos últimos anos, cientistas têm se dedicado a estudar a extensão, a precisão e o desenvolvimento dessa habilidade. Descobriram que ela é amplamente usada, é precisa, e é ensinada às crianças durante a infância. "Ela está com raiva, é melhor eu ficar quieto senão ela explode." Pensamentos como este são comuns entre seres humanos, e são exemplos de como somos capazes de ler a mente de outras pessoas. Observando o comportamento da pessoa (feição, movimentos), mas sem nenhuma informação verbal ou escrita, somos capazes de "ler" sua mente e deduzir seu sentimento (raiva). A partir dessa leitura, somos capazes de prever com alta probabilidade seu comportamento futuro (explodir). E, com base nesse conhecimento, alteramos nosso comportamento (ficar quieto). Mas essa leitura pode ser muito mais complexa. Muitas vezes lemos na mente da outra pessoa o que a pessoa está lendo na nossa mente. "Ele pensa que sou trouxa me cobrando R$ 100. Sei que custa R$ 20, vou oferecer R$ 30 e ele vai aceitar." O comprador leu na mente do vendedor o que o vendedor havia lido na mente do comprador. Se você observar seu dia a dia vai perceber que utiliza com frequência sua habilidade de ler a mente de outras pessoas. O impressionante é quão precisa é esta leitura. O jogo de pôquer consiste em uma disputa entre pessoas que tentam ler a mente do adversário e, ao mesmo tempo, tentam impedir que o adversário leia sua mente. Tal como a comunicação verbal e escrita, a leitura da mente é um dos ingredientes principais das interações entre seres humanos. Sedução e negociação são algumas das atividades em que essa habilidade é essencial. Hoje sabemos que ler a mente de outra pessoa ativa circuitos específicos no cérebro. Diversos experimentos demonstraram que a habilidade de ler de forma crua a mente de outra pessoa já existe em crianças de sete meses de idade e provavelmente possui um componente genético. Uma das características de pessoas com autismo é sua dificuldade de fazer a leitura da mente de outras pessoas. Do mesmo modo a dislexia é uma dificuldade de fazer a leitura de caracteres escritos. Grande parte da habilidade de ler a mente do outro é aprendida com os pais. Quando atribuímos estados mentais a personagens (o lobo mau está com fome) ou descrevemos para a criança o estado mental de outro adulto (seu pai está irritado), estamos ensinando a criança a deduzir o estado mental de outra pessoa a partir de sinais visuais ou comportamentais. Estudos recentes mostram que em Samoa, onde falar sobre o estado da mente de outra pessoa é considerado tabu e as pessoas evitam ao máximo o assunto, as crianças desenvolvem muito mais lentamente sua habilidade de ler a mente de outros seres humanos. Os cientistas acreditam que a habilidade de ler a mente é parte de nossa herança cultural e surgiu entre os homens muito antes da escrita e da comunicação verbal. Ao ler um poema de amor, transformamos riscos de tinta em palavras. E estas palavras, em uma leitura indireta da mente do poeta. Entre pessoas apaixonadas, a leitura recíproca das mentes é direta, completa e imediata. Talvez venha daí a sensação de fusão mental que acompanha os estados de paixão aguda. Claro que existe o risco de seu parceiro ser um exímio jogador de pôquer. *É BIÓLOGO . MAIS INFORMAÇÕES EM: 'THE CULTURAL EVOLUTION OF MIND READING'. SCIENCE VOL. 344 PAG. 1243091 2014

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