À espera de um milagre para Sofia

Em campanha na internet, família levanta quase R$ 2 milhões; artistas e jogadores se mobilizam

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Por José Maria Tomazela
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SOROCABA - Quando exames indicaram que o bebê que a auxiliar administrativa Patrícia Lacerda da Silva, de 27 anos, trazia no ventre tinha síndrome de Berdon, uma doença raríssima, os médicos foram claros: apenas por um milagre a criança nasceria com vida. A pequena Sofia Gonçalves de Lacerda nasceu sorrindo e, cinco meses depois, virou uma colecionadora de milagres. Seus pais, que vivem em Votorantim, região de Sorocaba (SP), com dois salários mínimos por mês, mobilizaram as redes sociais e contabilizavam na sexta-feira uma soma de R$ 1,9 milhão - o salário de cem anos -, arrecadados em uma onda de solidariedade que sacudiu o País. Com pedágios, bazares e campanhas programadas para este fim de semana no Rio, em Recife, Fortaleza e Manaus, a expectativa é de que o valor chegue hoje aos R$ 2 milhões. Outra façanha foi vencer a burocracia estatal brasileira e conseguir, na Justiça, que o Ministério da Saúde providencie a transferência e o Sistema Único de Saúde (SUS) arque com o custo da cirurgia da menina nos Estados Unidos. Sofia precisa de um transplante multivisceral, que custa R$ 2,4 milhões. Na terça-feira, o Tribunal Federal de Recursos (TRF) de São Paulo manteve a liminar que ordenava a remoção do bebê para o exterior. Rejeitando um recurso da União, o desembargador Márcio Moraes alegou a urgência do caso e o fato de que a vida da menina depende de um tratamento que não existe no Brasil. Anteontem, a União depositou US$ 1 milhão para garantir o custeio nos EUA, valor que não inclui os gastos que a família terá para se manter cerca de dois anos no país após a cirurgia. A mãe afirma que devolverá eventual sobra de recursos ou doará para entidades que atendem portadores de doenças raras. Os médicos já atestaram que, apesar de acometida de uma infecção que poderia ser fatal, Sofia está em condições de suportar a viagem ao exterior. Os pais, que desde o nascimento moram com a filha em um quarto de hospital, esperavam na sexta-feira a chegada do avião providenciado pelo governo.Diagnóstico. O drama da família começou em outubro do ano passado, quando a doença foi diagnosticada. "Os médicos disseram que se eu levasse a gravidez adiante estaria colocando minha vida em risco, mas decidi arriscar", conta Patrícia. Três anos antes ela havia perdido um bebê, que nasceu prematuro e viveu apenas 29 dias. "Hoje vejo que a perda dele foi para aprender a lutar pela Sofia. Decidi, com meu marido, que faríamos tudo, tudo mesmo para salvá-la." Durante a gravidez de alto risco, ela teve acúmulo de líquido amniótico no útero e passava mal. Deixou o emprego e foi obrigada a trancar a faculdade de Administração. O parto de Sofia, no Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi um drama: o bebê tinha excesso de líquido na bexiga e, apesar de a mãe ter dilatação, não poderia ser natural. Havia alto risco para as duas. "Me levaram para a sala de cirurgia e pensei que era o último dia da minha vida. Implorei para os médicos que não me deixassem morrer sem ver minha filha. Eles ficaram calados", recorda. A bexiga do bebê foi drenada ainda no útero, e Sofia nasceu forte, chorando e gritando, com 4,1 quilos. "Todos os que estavam lá se emocionaram", lembra. A luta de Sofia estava apenas começando. Como não podia mamar ou ingerir alimentos, o bebê seria alimentado por sondas na veia e não poderia deixar o hospital, mas o plano de saúde da família tinha um longo período de carência. Procurado, o advogado Miguel Navarro conseguiu a primeira vitória na Justiça - o plano teria de bancar os cuidados imediatos com a criança. Com a filha na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do hospital, Patrícia passou a viajar de ônibus diariamente de Votorantim para Campinas. "Ia para casa só para dormir, porque não podia ficar com ela." Uma nova ação do advogado permitiu que Sofia fosse transferida para a UTI do Hospital Samaritano, em Sorocaba, e que a mãe ficasse com ela. Na busca por tratamento, Patrícia descobriu que apenas o Hospital Jackson Memorial, de Miami, tinha um histórico de transplantes bem-sucedidos. Por coincidência, o setor cirúrgico é dirigido por um médico brasileiro, Rodrigo Vianna. Ao ser inteirado do caso, ele aceitou Sofia como paciente. Quando soube o custo da cirurgia, Patrícia teve um baque, mas não se desesperou. "Recorremos aos amigos, às redes sociais e, em fevereiro, lançamos um pedido de socorro."Solidariedade. Patrícia se emociona ao falar da onda de solidariedade que Sofia despertou. Começou com o patrão de seu marido, Gilson Gonçalves, que o liberou do trabalho por dois anos para cuidar da criança. Dezenas de cidades se mobilizaram, realizando pedágios e campanhas. Artistas, jogadores, apresentadores de TV aderiram e fizeram contribuições. O atacante Fred, da seleção, doou uma camisa autografada pelos jogadores. Em leilão virtual, a doação havia atingido lance de R$ 40 mil. Em um dos casos, uma família de Sorocaba comentava sobre a campanha na internet quando o filho, de 4 anos, foi ao quarto e voltou com o cofrinho de moedas e uma imposição: "É para a Sofia". A campanha foi tão bem-sucedida que Patrícia passou a ajudar outra criança com doença rara. O menino Pedro, de Governador Valadares (MG), tem a Síndrome do Intestino Curto (SIC) e precisa de uma cirurgia cara. A mãe, Aline Lavra, de 34 anos, também vai recorrer à Justiça para realizar um transplante no All Children's Hospital, em St. Petersburg (EUA). A nefropediatra Maria Helena Vaisbich, especialista em doenças renais raras do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo, diz que a Justiça é a "luz no fim do túnel" para quem precisa de medicamentos caros ou procedimentos complexos. "Encaminhamos para associações que se organizaram para isso. É a única forma de se obter o que é indispensável para os pacientes." A Associação dos Familiares e Amigos de Portadores de Doenças Graves (AFAG) e o Grupo de Estudos de Doenças Raras (GEDR) oferecem também apoio jurídico. Em Sorocaba, Patrícia teve apoio do Núcleo de Cistinose e Doenças Raras (NAPCD). Como no caso de Sofia, o governo contesta ações que buscam apoio da Justiça para tratamento dessas moléstias. Como há poucos casos, faltam pesquisas e os medicamentos são únicos - as chamadas drogas órfãs. Levantamento da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo divulgado em abril mostrou que dois terços das ações contra o SUS no Estado para aquisição de remédios de alto valor foram iniciados por pessoas com convênios particulares. Para Navarro, as ações buscam uma solução para a inércia do Estado em uma obrigação essencial: a vida.

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