A duas quadras de Congonhas, pai 'revive' filha morta em acidente

Família de Porto Alegre se mudou para apartamento a cinco minutos a pé do aeroporto após tragédia que matou a comissária de bordo Madalena

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Por Vitor Hugo Brandalise
Atualização:
Roberto. Digo comigo mesmo: 'sejam bem-vindos, senhores passageiros' Foto: NILTON FUKUDA/ESTADÃO

Tudo aqui na sacada do apartamento de Roberto Silva, um vendedor de sapatos de 61 anos que mora a duas quadras do aeroporto de Congonhas, faz lembrar o acidente. Deste 22.º andar vê-se perfeitamente a cabeceira da pista que o avião varou, a avenida que ele cruzou, o local onde ficava o prédio contra o qual, a 170 km/h e com os tanques cheios de 6 toneladas de querosene, se chocou e explodiu.

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Vê-se também, a cada pouco, pousos e decolagens de Airbus A320 idênticos àquele, e as conversas aqui são sempre interrompidas pelo barulho de turbinas. Um cenário de pesadelo, em síntese, para qualquer um que tenha perdido alguém naquela tragédia.

Mas não é para o Roberto, pai da comissária de voo Madalena, uma das 199 vítimas do acidente. As reações deste comerciante, gaúcho de Dois Irmãos (50 quilômetros de Porto Alegre), são o contrário do esperado. Em vez de se afastar do local onde a filha morreu, veio para perto. Meses depois da tragédia, Roberto e família - a mulher, Therezinha, e a filha mais nova, Soélen - se mudaram do Rio Grande do Sul para São Paulo. Escolheram este apartamento, a cinco minutos a pé do saguão de Congonhas, e vivem aqui até hoje.

“Olha à direita, lá vem um Airbus”, apontou o comerciante, debruçado na varanda, em uma manhã de maio. “Gosto de fazer minhas orações aqui na sacada. Fico às vezes até meia-noite, dependendo da hora em que cheguei em casa. Em dias de céu limpo, deito e fico olhando o movimento das aeronaves. Já cheguei a contar 11 no céu ao mesmo tempo”, conta. E já emenda: “Aqui me sinto próximo da minha filha, sabe? Era o ambiente de trabalho da Mana, na profissão que ela escolheu e adorava. Gosto do barulho, de ver os aviões, o aeroporto...”

O apartamento do Roberto é cheio de lembranças da filha e de objetos e fotos que remetem à aviação. Na entrada há um quadro grande (1,40 por 1,20 metro) com os nomes dos 199 mortos no acidente, bordados por Therezinha com linhas coloridas, e a inscrição “vida não tem preço”. Há imagens de Congonhas nos anos 1950, do treinamento de Madalena, de sua formatura como aeromoça. Ela tinha 20 anos, e 10 meses de TAM quando morreu. A “Oração do Comissário” fica em um nicho ao lado da TV e fala em “zelar pelo bem espiritual dos passageiros” e em um dia pousar no “aeroporto celeste”.

A lembrança está também na camiseta que Roberto veste, em homenagem à filha, com os dizeres “minha princesa” e uma foto dela, com um sorriso bonito. É uma das 32 camisetas que o comerciante mandou fazer, e conta usar todos os dias. Fotos na parede mostram o hábito. A família na praia, Therezinha e Soélen com roupas de banho, e Roberto de regata com a foto da filha; o comerciante brinda em uma festa de réveillon, pratica arvorismo com capacete vermelho, sopra as velas de um bolo de aniversário, posa ao lado do berço de um recém-nascido, sorri em um boteco com o copo de cerveja na mão - no corpo, sempre uma das três dezenas de camisetas brancas com Madalena estampada. É vida que segue, com a filha junto. “Acho até que exagero. Mas é minha forma de mostrar que ela não será esquecida. E as pessoas veem a foto, perguntam, e aí tenho uma desculpa pra falar dela. Ontem mesmo, no aeroporto, um senhor quis saber.”

Toda terça-feira - dia do acidente - Roberto vai à área de desembarque do aeroporto Foto: Nilton Fukuda/Estadão

O dia anterior era uma terça-feira, dia da semana em que Roberto criou outro ritual relacionado à filha. O pouso do avião JJ 3054 da TAM estava previsto para 18h49 de 17 de julho de 2007, uma terça-feira. Há dez anos, nesse horário e nesse dia da semana, “salvo quando estou fora da cidade”, Roberto vai à área de desembarque do aeroporto. Alguém poderia dizer que ele está “esperando a filha”, mas não é isso. Roberto assimila a perda assim. Não tem gente que faz terapia?

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O comerciante fica durante meia hora, uma hora, bate-papo com os passantes, bebe um pingado. Ele é conhecido dos funcionários, que o cumprimentam. “Já me perguntaram muito, mas não tenho a resposta completa”, diz, em uma caminhada pelo saguão. “Venho porque este era um lugar que ela frequentava. Às vezes faço uma fantasia de que ela está aterrissando, e pode vir a qualquer momento. Imagino que são os passageiros daquele voo, depois vêm as meninas, a tripulação... Sei que ela não vai aparecer, mas fico fantasiando. Me sinto bem aqui, então não vejo por que não vir. Mas pode me perguntar de novo daqui a dez anos e não vou ter uma resposta completa.”

Outro passeio corriqueiro do comerciante é pela Praça-Memorial 17 de julho, construída no lugar onde ficava o prédio em que o avião bateu. Também dá pra ver o memorial daqui, da varanda do Roberto. A construção desse espaço foi uma das lutas da Associação dos Amigos e Familiares das Vítimas do Voo TAM JJ3054, a Afavitam. Há 199 lâmpadas LED simbolizando as vítimas, um espelho d'água com os nomes gravados (alguns foram pichados por cima), bancos, canteiros de lavanda e, com destaque bem no centro, uma amoreira que ficava no estacionamento do prédio da TAM Express. A árvore é simbólica para os familiares de vítimas, por ter sobrevivido ao fogo. “É um lugar sagrado para nós, pois foi onde nossos filhos suspiraram pela última vez e onde foram cremados”, explicou Roberto.

Durante alguns anos, ele e Terezinha cuidaram voluntariamente do memorial. Emprestaram um macacão de lona e equipamento para piscinas e limpavam eles mesmos o espelho d'água, toda semana. Durou até que a água foi cortada, anos atrás. Hoje o espelho d'água está seco e acumula lixo e um ramalhete de flores que alguém colocou ali. “Disseram que em São Paulo praça só funciona com água da chuva mesmo, e cortaram. Agora está assim, às moscas. Acho até que, para a homenagem de dez anos da tragédia, vão arrumar isso, mas depois vai ficar abandonado de novo”, diz Roberto. Para ele, só um patrocinador pode salvar o espaço. “Sem isso, um lugar santo para nós e representativo da aviação brasileira vai ficar abandonado.”

A conversa se interrompe, pois outro avião vai pousar em Congonhas. Aqui na sacada, Roberto conta lançar pensamentos positivos para o voo. “Digo comigo mesmo: 'sejam bem-vindos, senhores passageiros' quando a aeronave está pousando. E quando está partindo desejo uma boa viagem a todos e que Deus esteja dentro dela. Digo: 'Bom voo, filha querida, tenhamos todos uma boa viagem e que todos nós estejamos com Deus.”

Correções

O texto acima foi atualizado às 13h02 desta segunda-feira, 10, para corrigir a informação sobre o combustível do avião.  A aeronave usava querosena, não óleo diesel.  

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