A Bela do Arouche

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Por Aguinaldo Silva
Atualização:

Ela se chamava Bela, embora não o fosse. Mas era assim que se apresentava aos que a abordavam no Bar do Arouche e ganhavam sua simpatia. Desde o primeiro dia em que lá fui e a vi eu me tornei um deles. "Gosto de você porque me ouve" ela dizia. Mas era impossível não ouvi-la. Todos os frequentadores do bar acabavam por fazê-lo, já que, depois do quarto chope, ela desandava a falar de si mesma. E enquanto tomava do quinto ao oitavo chope só a sua voz se ouvia.

 

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E as coisas que ela dizia... Que nascera na Mooca, mas fora expulsa de lá aos 13 anos depois de se apaixonar por um homem casado. Que vivera com um marinheiro, até que o dia o navio deste saíra numa viagem e nunca mais voltara. Que tinha dois filhos, mas eles foram levados pela avó e agora viviam com esta em Pindamonhangaba. Que tinham lhe oferecido um emprego em Nova York, mas não conseguiria viver longe de São Paulo. Que às vezes tinha vontade de matar alguém, só pra ver a sensação que isso dava.

 

Bela falava como ninguém até chegar ao décimo chope, quando então se voltava contra os que a ouviam e lhes dirigia insultos. E então saía do Bar do Arouche, atravessava a praça, seguia rumo à esquina da Vieira de Carvalho e, como num passe de mágica, lá sumia. Não dava notícias às vezes por mais de uma semana. Mas sempre reaparecia para consumir sua fieira de chopes e repetir o que ela chamava de "minha história de vida".

 

Um dia o balconista do bar, um paraibano cuja paciência com os clientes bêbedos a certa altura da noite sempre se esgotava, depois de ouvir Bela desfiar pela enésima vez seu rosário de histórias debruçou-se sobre o balcão e disse pra mim: "é tudo mentira". E então eu me perguntei: "seria?" Se descontasse o modo desordenado como ela os narrava, eu podia dizer que havia algum sentido no que Bela chamava de "os fatos de sua vida". Mas... E se ela tivesse inventado aquilo tudo?

 

Passei a segui-la quando saía do bar. Da minha janela, no sexto andar do prédio em frente, eu vigiava. De lá via quando Bela chegava e consumia sua fileira de chopes. Por volta do sétimo, eu descia até a portaria e lá aguardava. E quando ela saía do bar e traçava sua linha reta em direção à Vieira de Carvalho, eu a seguia.

 

Meu objetivo era descobrir para onde ela ia. Mas nunca cheguei a fazê-lo, pois, a certa altura da perseguição sempre a perdia de vista. Certa vez eu a vi dar de cara com um senhor em frente ao Galleto’s: os dois trocaram um aperto de mão e seguiram juntos. Em outra, um domingo, vislumbrei quando entrou numa das bocas do metrô República e se misturou aos remanescentes de uma das torcidas do Palmeiras.

 

Fiquei cada vez mais obcecado por descobrir quem era Bela. Tanto que, numa das vezes em que cruzei com ela no Bar do Arouche, cheguei a lhe fazer perguntas a respeito. Ela me interrompeu com uma frase sumária: "não falo da minha vida íntima". Mas "se era isso que sempre fazia entre o quinto e o sexto chope", insisti. E ela, de modo mais sumário ainda, respondeu: "faço por vontade própria, e não porque sou interrogada".

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Minhas temporadas no apartamento do Arouche, que eu vendi no final dos anos 80 - quando o Largo ainda tinha seus encantos - sempre terminavam sem que fizesse progressos nas minhas tentativas de descobrir a verdade sobre Bela. Mas, quando pegava o Trem de Prata rumo ao Rio de Janeiro, ia a pensar na minha vida no Arouche e tinha certeza de que, quando voltasse, o Largo seria o mesmo e, no bar em frente à minha casa Bela estaria, no canto mais ao fundo, com uma fileira de copos de chopes vazios à sua frente.

 

Foi então que ela sumiu durante muito tempo... E quando voltou era apenas uma sombra do que fora: magra, desalinhada, suja, com um tique nervoso no canto da boca... Ao vê-la assim, o rapaz do balcão proclamou: "o negócio dela agora é outro". E, levando dois dedos ao nariz, fez o gesto de quem cheirava alguma coisa.

 

Bela continuou fiel ao Arouche, mas nesta sua nova fase quase não falava. E não falou nunca mais, depois que a vi pela última vez, na esquina da Vieira de Carvalho na qual sua vida em segredo começava: ela estava estirada no chão, com duas velas que uma alma caridosa acendera a lhe iluminar o rosto. E tinha no peito os dois buracos das balas disparadas por um homem que saíra da multidão e depois para lá voltara, encerrando com este trágico final o mistério da Bela do Arouche. Ela se fora.

 

*Aguinaldo é novelista, autor de ‘Duas Caras’ e ‘Cinquentinha’

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