Há mais de 20 anos, eles carregam uma cruz pesada. A Justiça quer lavar as mãos. Em vez de se resignar, Stefany estuda direito para continuar lutando.

PUBLICIDADE

Por Bruno Paes Manso
Atualização:
 Foto: Estadão
 Foto: Estadão
 Foto: Estadão

Desembargadores são pessoas de carne e osso, com sangue correndo nas veias, assim como eu e você, caro leitor. Mas parece que alguns se transformam em estátuas de mármore quando vestem a toga, observando o mundo de uma posição superior, em cima do pedestal, como se não fizessem parte da confusão aqui da terra. É o caso de alguns dos profissionais que trabalham no Tribunal de Justiça do Pará. A insensibilidade da Justiça no Estado arrasta desnecessariamente o sofrimento da família das fotos acima que já carrega uma cruz pesada faz mais de 20 anos. Desde quando Stephany, hoje com 21 anos, a filha mais nova entre os três irmãos, tinha 10 meses. Marcelo era um menino de 5 anos e Gustavo, de 3.

PUBLICIDADE

No final de março, os desembargadores paraenses tiveram a chance de solucionar um dos mais graves erros da justiça brasileira, mas preferiram lavar as mãos. A desculpa para se omitirem foram filigranas processuais. Mantiveram presos os médicos Césio (o pai das fotos acima), de 56 anos, e Anísio, de 72, condenados em 2003 pelo sequestro e morte de crianças em Altamira (três morreram e duas sobreviveram). Acusados de emascularem as crianças depois de mortas, usando os órgãos sexuais em rituais satânicos, foram presos diversas vezes. A última prisão ocorreu em 2009 e até hoje eles permanecem encarcerados, como havia contado neste blog.

A punição seria mais do que justa. Só que desde 2004 se sabe que eles não cometeram o crime. Naquele ano, um mecânico chamado Chagas, ex aventureiro em Serra Pelada, confessou a morte de 42 crianças, 12 delas em Altamira e 30 no Maranhão. Tratava-se de um serial killer, que apontou os locais dos crimes, onde estavam alguns corpos e os detalhes dos assassinatos, com detalhes que revelaram seu perfil obsessivo com traços de um psicopata. A defesa dos médicos pediu a revisão criminal e a anulação do julgamento, já que o novo réu confesso contara tudo à polícia.

Era de se imaginar desembargadores envergonhados, homens e mulheres apressados em desfazer o mal entendido, em pedir perdão à família que pagou um preço incalculável por causa da incompetência dos servidores públicos. Só que veio a decisão dos homens de pedra, que se agarraram em leis menores para insistir em seus graves erros, sem perder a pose de que agiam como cumpridores de sua nobre tarefa. Os desembargadores alegaram que seria preciso que Chagas, o serial killer, prestasse depoimento em juízo para rever a decisão de 11 anos atrás. Não bastava o que ele falou diante da polícia, em entrevista filmada com a presença de peritos. Era preciso que ele falasse diante de um juiz.

Eu não sou nenhum expert em direito, mas tenho um mínimo de bom senso e noção do que é justo e injusto. A primeira coisa que me vem à cabeça nesse caso é a discussão feita por Hannah Arendt para a revista New Yorker no julgamento do nazista Eichmann em Jerusalém sobre a banalidade do mal. Durante o Júri de Eichmann, a filósofa percebeu que ele, ao contrário do que ela imaginava, não mandava os judeus para o extermínio nos campos de concentração por ser um carrasco genocida. Mas por se tratar de um burocrata, ciente de seus pequenos deveres cotidianos. Escapava da cabeça obtusa de Eichmann toda a discussão moral a respeito da crueldade que ele estava praticando. O burocrata se sentia satisfeito e se enxergava como um homem zeloso e de bem por obedecer as ordens de seus superiores.

Publicidade

A banalidade do mal surge na sala do tribunal paraense na pena dos desembargadores. Em vez de tomarem uma decisão com base na moral, seguem a correção fria e estúpida das normas processuais, como se cumprir esses procedimentos fosse um fim em si mesmo ao invés de um meio para se fazer Justiça.  Juízes que, em vez de decidirem olhando para a vida real e para o desespero de pessoas de carne e osso, se apequenam dentro de seu mundo protegido por uma bolha de plástico.

Alda Fávero, a mãe das crianças e mulher de Césio, afirma que hoje já não acredita mais na Justiça dos homens. Evangélicos, eles se mantém unidos porque ainda acreditam na Justiça Divina, segundo Alda me explicou. Stefany, no entanto, a filha mais nova, ainda não desistiu dos juízes e dos tribunais. Depois de acompanhar e viver o drama junto com o pai, passou a estudar direito na Universidade Federal do Espírito Santo. Leu o processo, foi visitá-lo em março na prisão em Belém, depois de cinco anos sem vê-lo. A defesa recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Apesar de ainda ser estudante, Stefany debateu os caminhos jurídicos a serem trilhados.

A resposta agora está nas mãos do STJ. Ainda há chances de redenção para a Justiça do Pará e do Brasil. Será que os juízes dos tribunais superiores são pessoas que se importam com o destino de inocentes que já sofrem há mais de 20 anos com os erros da Justiça? Um ano a mais um ano a menos, quanto tempo o pesadelo dessa família ainda vai durar? Não sei por quê, mas às vezes eu tenho a impressão de que o futuro do Brasil depende de pequenos casos como este, o retrato mais verdadeiro do caráter da sociedade em que vivemos.

 

A família criou uma página no facebook para angariar apoio: chama Césio Brandão e Anísio Ferreira - Queremos Justiça!

 

 

 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.