Foto do(a) blog

Correndo atrás do vento

Opinião|Universos, ciclos e um arco-íris no final da tarde

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Henrique Matos
Atualização:

"Olhai os lírios do campo." (Mateus 6:28)

PUBLICIDADE

No ano em que a sonda Perseverance fez seu pouso em Marte para uma nova jornada de descobertas e explorações à procura de indícios de vida fora da Terra, eu entro em uma nova trajetória de descobertas e explorações neste pequeno mas inescrutável universo que chamamos de lar.

Nina, nossa filha mais velha, completou 14 anos há duas semanas, o que a põe, de acordo com estatutos, estatísticas, termos de uso de redes sociais e regras de projetos de Jovem Aprendiz, oficialmente em novo estágio de faixa etária e, por consequência, um passo mais longe das nossas asas. Dez dias depois, como acontece a cada doze meses - ao menos nisso temos alguma previsibilidade garantida nesses tempos - Cecília chegou aos seis anos, o que a põe, de acordo com a tradição das conquistas celebradas na infância, oficialmente no universo de pequenos indivíduos que usam as duas mãos para mostrar a idade (lembro que me senti um sujeito bastante maduro nesse dia). Como consequência, me ocorre que a partir de agora ela vai se recordar com mais nitidez dos eventos que se passam em sua vida e sua memória da infância passará a ser edificada tendo esses dias - esses loucos, insanos, pandêmicos dias - como pedra fundamental.

Os seis anos de Cecília em nada se parecem com os da Nina oito anos atrás, tal como os 14 da Nina em nada se assemelham à adolescência que Manu e eu vivemos nos anos 90. A vida de cada indivíduo é, obviamente, diferente em perspectivas, experiências, histórias e olhares. Mas, se em quase tudo isso é um ponto a ser celebrado, pela ótica da paternidade, preciso dizer, é jogo duro. Elas começam a habitar mundos distintos, insondáveis e novos para elas e para nós também. E a pergunta que mais fazemos nesses dias ao pensar em nossas filhas é: como podemos participar desse universo?

A pandemia que enfrentamos trouxe essa transformação integralmente para debaixo desse teto que habitamos. E se há o benefício de estarmos perto uns dos outros, testemunhando esse processo, há também o constante atravessar de linhas e fronteiras que deveriam ser respeitadas. Porque não tem, por enquanto, o espaço de vida que elas vivem lá fora, na escola, na rua, nas festas e passeios. É tudo aqui, a transição toda e essas mudanças todas, no quarto ao lado, no sofá da sala, aqui perto, em frente a uma tela. Elas, que entram em novas e desconhecidas etapas de suas vidas e nós, que avançamos os limites da individualidade enquanto formos forçados a trazer a vida inteira, toda rotina de nossos dias, para sentar conosco durante as refeições.

Publicidade

Se a existência no planeta nesses últimos meses mais parece essa coisa encapsulada, compacta, atemporal e difícil de navegar, os ciclos da vida, por outro lado, continuam acontecendo no cotidiano de nossa miudeza doméstica, nos gestos familiares, nas pequenas celebrações, no ritmo da rotina onde a mesa de jantar se tornou o epicentro de qualquer debate.

*

Pouco antes da pandemia começar, as coisas ainda eram diferentes. Houve um mês em 2019 - tipo, mil anos atrás - em que Nina me interpelou com um pedido. Ela queria que eu a ajudasse a andar de monociclo. Aconteceria uma apresentação de circo na escola e ela havia decidido, entre outras atividades, que atravessaria a quadra do colégio pedalando sobre aquela roda.

Acho que foi uma das últimas coisas que fizemos, só nós dois, fora de casa. Saímos algumas tardes nos finais de semana para ela treinar e treinar e, por muito tempo, tudo o que ela conseguia era dar duas ou três pedaladas antes de perder o equilíbrio.

Com o tempo, as pedaladas foram aumentando gradualmente e, numa manhã de sábado, ela já conseguia dar a volta no prédio. Confesso, hoje, que não achei que ela seria capaz e acho tanto quanto empolgado, fiquei surpreso - Nina, assim como eu, tem raras habilidades físicas ou esportivas. A certa altura, já confiante em seu treino, enquanto praticava em uma curva, o pneu deslizou e ela despencou no chão áspero. Tentei minimizar, bati palmas, incentivei para que ela levantasse e seguisse em frente, mas depois de alguns segundos ela continuava caída e de cabeça baixa. Eu me aproximei para checar se precisava de ajuda e ela levantou o rosto com os olhos cheios de lágrimas. Aquele olhar me encarando um pedido de ajuda, aquele nariz ficando vermelho, os lábios franzidos contendo um choro, o braço estendido pedindo apoio e eu agarrando aquele bebê de 1,60 no colo e lembrando imediatamente de cada um dos tombos no parquinho que amparei.

Ela mancou o resto do dia. Na manhã seguinte, pegou o monociclo e desceu para treinar. Dias depois, durante a apresentação do circo, assisti, vibrei e aplaudi na plateia enquanto ela atravessava a quadra do colégio vestida de palhaço e pedalando e se equilibrando sobre aquele monociclo. Ela estava radiante com a própria conquista e eu me sentia satisfeito em participar de seu pequeno projeto. No fundo, me dava conta de que minha presença, cada vez mais, seria menor. Em cada nova etapa, ela se torna ainda mais dona do controle, autora das decisões, responsável por escolher que caminhos deseja trilhar e pilota os veículos que bem decidir. São seus ciclos.

Publicidade

*

Cecília adora peixes. E cachorros, gatos, galinhas, pássaros, sapos, adora animais de qualquer espécie que lhe passe diante dos olhos e ao alcance das mãos. Quer apertá-los e trazer para viverem em seu quarto. Ela gosta de pedalar sua bicicleta e flutuar com seus patins e parece que procura explorar suas forças físicas até o limite daquele corpinho de pouco mais de um metro de altura. Não se contenta em não saber qualquer coisa. Então ela não sabe frear. A bicicleta, às vezes, avança até a guia e tomba. Os patins, com frequência, esbarram nos pés das cadeiras, portas, poltronas e no rabo da cadela dentro de casa. Não enxerga limites para o que quer que seja e, paradoxalmente, acabou de celebrar o segundo aniversário trancada em casa. Ela quer ter uma cauda de sereia.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Ela chegou depois. Quando nasceu, Nina tinha oito anos e em casa já existia a presença de uma irmã mais velha. Já éramos uma família, éramos pais e, ainda que cada filho traga consigo uma experiência completamente nova de sentimentos, perspectivas e mereça sua carga própria de afeto, Cecília não sabe, por exemplo, o que é ser filha única. Ela não viveu com a gente enquanto experimentamos a paternidade pela primeira vez. Os primeiros aniversários, primeiras leituras, dentes caídos, mergulhos... por consequência, muitas das primeiras vezes dela já eram a nossa segunda. O deslumbramento natural em seus olhos precisa ser praticado nos nossos. Então, a seu modo, ela passou a preencher um espaço próprio nesse ambiente e, até por isso, sinto que é ainda mais protagonista nessa relação. Vivemos com ela o jeito que é só dela. Enquanto nossa limitação só era capaz de conceber uma única forma de deslumbramento para essas experiências, Cecília cria suas experiências e nos convida para assistir.

Há algumas semanas, enchemos o pneu da sua bicicleta e saímos para dar uma volta. Era fim de tarde e o sol estava forte. Depois de meia hora correndo atrás dela pela rua, percebi que as perninhas já estavam começando a vacilar e as bochechas vermelhas. "Quer descansar um pouco, Cici? Quer um pouco de água?". Ela nem respondeu, seguiu convicta como se enfrentasse o sprint final do Tour de France. Em certo momento, numa pequena curva em declive, ela perdeu o equilíbrio e o pedal escapou de seus pés. Eu corri para socorrê-la e tentar evitar o tombo, mas tropecei no pneu, rolei por cima dela e despencamos juntos. Por sorte, havia um gramado onde caímos entrelaçados.

Passado o pequeno susto, ela sorriu. Ainda estávamos no chão e ela se aninhou no meu braço e ficou por ali. Ficamos. Sentindo o sol, o cheiro da grama, o perfume do seu cabelo, mirando o céu e vivendo juntos a nossa primeira vez de uma coisa, qualquer uma, alguma lembrança que seja só nossa e que permaneça. Porque a partir de agora, cada vez mais, suas experiências se tornarão as memórias que carregará pela vida. São seus ciclos.

*

Publicidade

A cada nova etapa, aprendemos a ser pai e mãe, de novo e de novo e tentamos habitar no universo que elas habitam. Achando sempre que é cedo demais para qualquer coisa. Sentindo sempre esse medo de que seja tarde demais para alguma coisa. Dedicamos-lhes preces. Nesses dias cansados, já nem me expresso, porque me faltam... só miro um desejo íntimo e profundo, só me empenho em navegar os pensamentos no que espero, no que gostaria e dirijo intenções para um céu alegórico. Deus, é isso, por favor, obrigado, assim seja.

O mundo segue rendido diante de um vírus, paralisado, chorando com os que choram, celebrando a sobrevivência dos que ficam. A humanidade, aos tropeços, seguindo em frente, procurando curas, lançando foguetes e explorando novas fronteiras do espaço à procura de respostas e de vida. A vida, que a seu modo, continua acontecendo aqui, sob nossos tetos, onde residimos, onde resistimos, testemunhamos meninas se tornarem moças e o desabrochar da vida. E seguimos aprendendo a celebrar nossas pequenas conquistas, soprar velas e dançar com a existência que segue em seus ciclos.

Março acabou faz poucos dias. Como em todos os anos, o fim do mês é marcado pelo aniversário de nossas filhas e uma chuva torrencial nos fins de tarde. Em casa, é uma correria desesperada para fechar as janelas e portas para que não batam e a água não molhe o piso e as cortinas. São as águas de março de Tom Jobim que tomei para mim como forma de marcar o tempo, de contar os anos, essa água torrencial que não controlo mas a quem teimo em resistir. O tempo leva tudo, a tempestade lava tudo. Mas os fins de tarde por aqui, depois de a chuva molhar os jardins, têm findado com o sol do outono que se precipita, o cheiro da terra úmida, o canto das maritacas procurando repouso nas árvores, a luz alaranjada atravessando a sala e um arco-íris que às vezes se projeta no céu, deixando Cecília radiante, nossos olhares cativos e a alma finalmente serena com essas poucas certezas que ainda nos restam.

Opinião por Luiz Henrique Matos

É escritor e publicitário. Autor dos livros “Enquanto a gente se distrai, o tempo foge” e "Nem que a vaca tussa!" e criador do canal Frases de Crianças.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.