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Correndo atrás do vento

Opinião|O som dos passos e dos pássaros

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Foto do author Luiz Henrique Matos
Atualização:

Cecília aprendeu a ler. Ela já vinha há alguns meses naquele fluxo de juntar letras em sílabas e tentar encontrar alguma sonoridade. Mas, nos últimos dias deu o estalo, aquele estalo, em que a união das sílabas adquiriu sentido, som e palavras, novas palavras que saem do som e se formam em imagens, significados e histórias que agora ela absorve de outra forma.

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"Nina", ela interpelou a irmã mais velha, leitora voraz, apertando uma revista em quadrinhos da Mônica entre os dedos, "ler não é nada chato, é muito legal! Agora eu vou pegar todos os livros do seu quarto!"

Se algum dia ela ganhar o prêmio Nobel de Física, talvez eu não fique tão feliz quanto agora. À noite, já na cama, sussurrei orgulhoso:

- Filha, aprender a ler é tipo decifrar um código secreto. Agora que você conhece os códigos, tem mistérios e universos novos que você vai começar a descobrir.

Há muitos livros pela casa, há uma estante grande e recheada de exemplares no escritório e também livros nos quartos e espalhados. Um luxo particular que acumulamos desde o casamento e que as meninas acompanham. Cecília tem mais livros aos sete anos do que eu tinha aos vinte. E agora vai revisitar essas histórias fazendo isso por ela mesma, palavra por palavra.

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Na manhã seguinte, ela segurava um pequeno livro com uma centopéia na capa:

- Pai, alguma vez você já entendeu as palavras que um inseto diz para o outro?

- Sim, uma vez. Eu lembro que um mosquito chegou bem pertinho do meu ouvido, bem pertinho mesmo e falou algo pra mim.

- O que ele disse?!

- Bzzzzzzz bzzzzz!

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- Ah não, pai... - e espalmou a mãozinha sobre o rosto.

- E você? Já entendeu o que dizem os insetos? - perguntei apontando a capa do livro.

- Ssshhhhh! Espera um pouco - de repente, ela já estava em outro lugar, o olhar intrigado voltado para o alto, se concentrando em algo distante.

- O que foi, Cici? Eu estava dizendo que...

- Silêncio, pai. Estou escutando o som da natureza.

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Postada ao lado da janela, ela se concentrava no que podia ouvir do lado de fora, onde uma dupla de pássaros cantava nas árvores perto da nossa varanda e o vento soprava nas folhagens.

- Estou ouvindo os pássaros - disse, de olhos fechados - e quero ver se consigo escutar algum inseto.

Pouco mais de uma hora depois, eu estava na rua correndo e mirava a copa das mesmas árvores que minha filha sondava da janela tentando escutar também o canto dos pássaros que ela dizia contemplar. Esses milagres ordinários têm feito muita falta ultimamente. Uma criança descobrindo universos novos, pássaros cantando, folhas crescendo e caindo com o passar das estações. Os ciclos da vida que se renovam cotidianamente sob nosso teto, que são maravilhas pelas quais passamos e quase desviamos sem notar, com receio de tropeçar em miudezas porque, afinal, bem, afinal sempre há alguma desculpa.

Corro, um passo após o outro, sentindo o vento gelado do inverno cortando meu rosto, a respiração ofegante, a batida da sola do tênis no asfalto. Escuto o martelar das ferramentas na construção que se ergue ao lado do nosso condomínio, o ronco do motor de uma moto rasgando a rua. O relógio apita avisando que mais um quilômetro foi superado.

Adquiri esse hábito um pouco antes da pandemia começar e... Hahahah, "adquiri o hábito" é uma falácia danada da minha parte. Comecei a tentar a correr no final de 2019 depois de um colapso mental e achei que fazer uma atividade física sozinho, à noite, e sem o escrutínio alheio sobre minha humilhação, seria uma forma de exorcizar através do suor e sacrifício, os demônios que me atormentavam. Sessão de exorcismo. É assim que chamo minhas horas de corrida desde então.

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Mas, o passar do tempo e dos quilômetros me permitiu, desde então, adquirir alguma capacidade de fazer isso com certo controle. Se no começo a corrida era uma forma de fugir de uma crise e esmagar no chão, em cada pisada, a carga pesada de cada dia, hoje já é mais como uma trilha que percorro rumo à realização pessoal, uma sensação de alívio e bem-estar provocado pela injeção de serotonina dos treinos. A crise ficou lá atrás e agora corro em direção a uma nova história.

Aprendi, nesse processo, que para ser capaz de correr longas distâncias às vezes é preciso desacelerar e ir mais devagar. Um pé e depois o outro, o ritmo cadenciado, uma letra ligada em outra, formando palavras, caminhos e histórias. Cada pequeno passo é um milagre.

- Onde você vai com todos esses livros, Cici? - ela estava com alguns exemplares da minha coleção empilhados sobre os dois bracinhos curtos e caminhava em direção a sala.

- Ora, pai, eu vou ler! Onde mais você acha que eu iria?

Eu olho para a pequena pilha de livros que deixo sobre a mesa e penso quais desses exemplares, algum dia, ela e a Nina pegarão para ler e de que forma essas histórias serão assimiladas por elas, as opiniões que trocaremos sobre livros, preferências e broncas porque alguém violou a regra sagrada de não profanar as páginas com dobraduras.

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Agora ela anda com livros para todos os lados. E como se fosse realmente capaz de ler Dickens, em inglês, abre tomos de 600 páginas em trechos aleatórios e fica tentando decifrar aqueles códigos. Tem uma beleza nisso.

- Mãe, G com R e mais o U dá o que mesmo? E o N com H e mais o I? G com A é GA ou JÁ?

E passa o dia assim. Do outro cômodo, enquanto trabalho, escuto essa música e sorrio. Eu silencio o ruído que sai de alguma reunião no meu computador, fecho os olhos e me concentro nela ali, sentada, os olhos vidrados nas páginas, a mente se expandindo como o Universo e a boca balbuciando as descobertas. É o som da natureza.

Palavra por palavra, ainda, ressoando como música. O som dos passos e dos pássaros, o soprar do vento no rosto marcando o tempo e o ritmo nessa jornada que percorremos, devagar, testemunhando milagres.

Opinião por Luiz Henrique Matos

É escritor e publicitário. Autor dos livros “Enquanto a gente se distrai, o tempo foge” e "Nem que a vaca tussa!" e criador do canal Frases de Crianças.

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