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Correndo atrás do vento

Opinião|O que ele disse?

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Foto do author Luiz Henrique Matos
Atualização:

- Olha isso aqui. Você viu isso, amor?

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Entrei na cozinha pela manhã, ela estava preparando uma tapioca no fogão enquanto segurava o celular em uma das mãos. Virou o aparelho para mim e mostrou a tela. Limpei os olhos ainda embaçados pela noite de sono e vi que havia uma foto dele e uma citação.

- Não é possível. Você leu isso onde? É uma fonte de confiança? Hoje em dia tem gente fazendo de tudo para...

- Olha aqui! - ela me interrompeu - é do jornal que você assina. Você acha que eu tô lendo notícia falsa?

- Não é isso... É que é tão absurdo. É sério mesmo? Deixa eu ver?

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- Toma - ela me deu o aparelho e se virou para fechar a tapioca na frigideira.

- Hum. É. Putz.

- Eu te falei... Agora, me diz, como assim?! Como pode? Como ele fala uma coisa dessas, como alguém diz um absurdo desses e ninguém fala nada, ninguém denuncia? Isso é uma manipulação descarada sobre o povo.

- E está esquentando, né?

- Esquentando nada. Continua tudo na mesma morosidade de sempre. Ninguém toma uma atitude.

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- Tá esquentando a frigideira. Vai queimar o lado de baixo da tapioca.

- Ah, sim.

- Mas ainda tem muita gente que acredita no que ele fala. O que se pode fazer? Ele fala essas coisas e a base fiel continua lá, aplaudindo. É triste, mas isso tem muito eco no coração das pessoas.

- Aí é que está o problema. Ninguém faz nada, nunca. E as coisas continuam assim. O absurdo vai se normalizando. Ele fala um monte de barbaridades e, como nada acontece, vai esticando a corda.

- E o que a gente pode fazer?

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- Passa a faca!

- Faca? Como assim?

- A faca, querido. Me passa a faca para tirar um pouco da manteiga aqui.

- Ah, sim. Tá aqui.

- E a gente achando que o que tinha antes era pior...

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- Não gostou dessa marca de manteiga? Comprei achando que era a sua favorita.

- Não, estou falando dele.

- Ah. Que sonho era aquele? Eu dizia que antes a gente não tinha nada a "temer". Saudades.

(Risos. Risos).

- Tinha que acabar com tudo "de uma" vez?

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- Mas não foi de uma vez. Você lembra. Foi um processo. Foram fritando tudo aos poucos.

- Tô falando da manteiga. Você tinha que terminar tudo de uma vez? Não sobrou pra mim...

- Ai, desculpa.

- O problema é: o que dá pra fazer agora?

- Tem requeijão, se você quiser.

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- Tô falando dessas declarações.

- Ah. Eu também fico perguntando se não é preciso uma atitude mais drástica.

- Passa a faca?

- Calma, não é pra tanto... Ah, sim, toma, tá aqui.

- Obrigado. Estava fora do meu alcance. Assim como isso tudo parece tão difícil de lidar. O que a gente consegue fazer senão ler essas coisas, se indignar e resistir da forma como sabemos fazer?

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- E fazer a nossa parte para isso não contaminar as meninas, para que não sofram no futuro.

- Isso bem que podia acabar logo.

- Confesso que tô com medo é de não acabar tão cedo. A gente não sabe. Só acho é que não vai acabar bem. Como você falou: a corda está esticando.

- Sim. Você viu o que ele disse semana passada? Aquela fala sobre o outro assunto, o que pretendem fazer?

- Vi. É uma delinquência. Tem tanta coisa importante para fazer, o mundo empilhando tragédias, a sociedade sofrendo... Deveria haver um mínimo de coerência. Pelo menos agora, as coisas poderiam ficar um pouco mais...

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- Doce.

- Não. Aí já é querer muito, né?

- Doce. O café ficou muito doce. Você já tinha colocado açúcar?

- Já.

- Putz, eu coloquei de novo.

- Esqueci de avisar, desculpe.

- E o que a gente pode fazer?

- Quer colocar um pouco de água quente? Vai ficar aguado, mas...

- Não. Sobre isso tudo, meu amor. O que a gente, aqui, pode fazer a respeito? Eles falam essas bobagens todos os dias, ficam postando e martelando isso na cabeça das pessoas. Parece aquele negócio do duplipensar. É tão evidente... e a gente não vai gritar que está errado, mostrar que é irracional?

- Mesmo ao usar a palavra duplipensamento é necessário praticar o duplipensamento. Porque ao utilizar a palavra admitimos que estamos manipulando a realidade; com um novo ato de duplipensamento, apagamos esse conhecimento; e assim por diante indefinidamente, com a mentira sempre um passo adiante da verdade.

- Oi?

- Você citou 1984. É isso o que o Orwell fala no livro sobre duplipensamento. Anotei no celular outro dia enquanto pensava nessa situação toda.

- E imaginar que o livro trata de uma distopia.

- Quem dera isso fosse só ficção... Lembra que te falei daquele livro do Amós Oz, "Como curar um fanático"? Ele fala isso. Diz que o fanático, no fim das contas, é um idealista, um ser cheio de boas intenções. Ele acha que tudo o que faz é para te salvar de algo que você não enxerga e só ele, alma caridosa e defensora do bem, é capaz de compreender.

- Então querem me salvar falando que vivo na cegueira?

- Utopia.

- Tem o quê na pia?

- Não é na pia. Eu disse utopia.

- Ah, o que tem?

- Acho que é disso que a gente precisa agora: construir nossa própria utopia. Começar a desenhar um mundo com o qual sonhamos e semear esse mundo aqui em casa, com as pessoas ao nosso redor. Porque se não dá para mudar o país todo, pelo menos a gente constrói um recomeço nesse núcleo, cuidando do microcosmo familiar, do nosso jardim. E aqui a gente pode ser e fazer o que quiser. Daqui, a gente estende generosidade, amor, compaixão e apoia a quem a gente puder e estiver ao nosso alcance.

- O que você acha?

- O Oscar Wilde disse que "o progresso é a realização de utopias". Acho que você pode ter razão. É o que está ao nosso alcance agora.

- Me alcança o café?

- Sim.

(Suspiros esperançosos).

- Quer outra tapioca com manteiga?

- Quero, obrigado. Com manteiga e utopia.

(Silêncio).

- E se não der certo, o que a gente faz?

- Passa a faca?

Opinião por Luiz Henrique Matos

É escritor e publicitário. Autor dos livros “Enquanto a gente se distrai, o tempo foge” e "Nem que a vaca tussa!" e criador do canal Frases de Crianças.

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