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Correndo atrás do vento

Opinião|Dentes deleites

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Foto do author Luiz Henrique Matos
Atualização:

Encontrei um par de dentes sobre o móvel ao lado da cama hoje pela manhã. Ainda um pouco entorpecido pelo sono - o que, no meu caso, costuma levar umas duas horas para passar - manuseei aquelas coisinhas brancas entre os dedos antes de começar a me preocupar.

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Cheguei a pensar que pudesse ter sido real a briga em que me envolvi num bar com dois marmanjos à beira do cais num porto em Cuba, Afinal, tanta gente me mandou para Cuba ultimamente que a ilha agora habita de forma involuntária o meu imaginário e sonhos. Mas logo passei a língua pelos dentes e corri para checar o espelho do banheiro. Gracias! Tudo estava no mais imperfeito e esperado desalinhamento de sempre.

Minhas filhas, já acordadas, também mantinham seus sorrisos impecáveis. Nina, adolescente, sorria radiante como o raio ensolarado que invadia a sala e Cecília, aos sete anos, tinha lá seus buracos de dentes ainda não nascidos, mas nenhuma janela nova desde a véspera. Lucy, a cadela, também preservava a arcada (e não tem, um cão de 35 quilos, dentes como aqueles na boca).

Apreensivo, vi a Manú de costas, sentada à mesa, bebendo um café com leite e segurando um biscoito na outra mão. "Amor?", eu chamei com a voz trêmula. Ela virou e só me olhou meio de canto. "Bom dia. Dormiu bem?", eu insisti, tentando provocar nela um sorriso amistoso que não sabia se queria realmente ver. "Ahãm", ela respondeu, resmungando, sem descolar os lábios. Entre os dedos, eu esmagava o par de dentes enquanto tentava pensar numa piada que a fizesse sorrir.

Me aproximei da mesa, toquei seus ombros, lembrei as juras de amor eterno aos pés daquele altar e pedi "posso ver seus dentes?".

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Com o rosto quase dentro da xícara de café, sorvendo um gole, ela me encarou enquanto perguntava desconfiada "pra quê?".

"Só quero te ver sorrir. Alegrar esse dia, afinal", falei com a convicção de um são paulino parabenizando um palmeirense pelo título.

Ela sacou a xícara, me abriu um sorriso e, para nossa felicidade conjugal, estavam lá, todos eles, molares, pré-molares, laterais, caninos, frontais e as belezinhas das restaurações todas em dia.

Sentei, bebi meu café, comi as duas bandas de pão com manteiga e mantive o pensamento intrigado no rio dos dentes.

Fui até o banheiro me lavar e escovar os bons dentes que ainda tenho na boca quando, ao passar pelo quarto, vi um papelzinho, pequenino, caído ao lado da cama. Me abaixei para pegar, desdobrei com cuidado e puder ler, em letras minúsculas e prateadas, um bilhete a mim endereçado, avisando que "por insuficiência de saldo e falta de pagamento" os dentes estavam sendo devolvidos, até "regularização dos débitos devidos, conforme acordo estabelecido" e assinado, com data e rubrica, pela senhorita "Fada do Dente".

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Opinião por Luiz Henrique Matos

É escritor e publicitário. Autor dos livros “Enquanto a gente se distrai, o tempo foge” e "Nem que a vaca tussa!" e criador do canal Frases de Crianças.

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