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Correndo atrás do vento

Opinião|A distância que nos separa

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Atualização:

- Você viu que essa tv vem com dois pares de óculos de 3D? - Jura? - Legal, né? Vai dar pra assistir filmes com coisas saltando da tela para o meio da nossa sala.

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E assim começou e terminou a breve história dos óculos 3D aqui em casa. Quase oito anos depois, eles repousam na mesma caixa em que vieram, sem nunca terem sido usados.

Não foi por falta de oportunidades, mas uma escolha conjugal. Afinal, a vida já é essa coisa multidimensional. Entre nós, achamos que aos filmes cabe o papel que se espera deles: uma boa história narrada em duas dimensões, contando e contendo a ficção que lhe compete e que nos tira da realidade por alguns minutos, mas sem nos fazer alheios ao que nos cerca. A tela era um escape.

Semana passada, depois da décima terceira reunião virtual no mesmo dia, de 15 horas consecutivas sentado em frente ao computador e de 13 meses com meu olhar concentrado nessa placa de LED para trabalhar, frequentar aniversários, assistir filmes, aulas e qualquer outra atividade que envolva pessoas que não vivem sob esse teto, bem, eu só queria que todas as telas ao meu redor caíssem estilhaçadas no chão como um vidro de Marinex.

Quando a pandemia começou, acreditei, como muita gente, que passaria logo. De forma ainda mais ingênua, cheguei a pensar que, a despeito da tragédia que se impunha, talvez a situação servisse para mudar o foco, para nos unir como espécie em torno de um adversário comum em busca de sobrevivência e cura, já que desde as manifestações de 2013, vínhamos acumulando bofetadas virtuais (bem, nem sempre só virtuais) nessa disputa política que vem se acentuando desde então e fez com que descobríssemos uma face de nossos semelhantes que parecia oculta.

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Infelizmente, mesmo a ciência virou bola de disputa política. A verdade, os fatos (os inegociáveis fatos) passaram a ser questionados.

A besta que emergiu entre nós cavou um abismo que separou de forma dramática relacionamentos até então saudáveis e afetuosos. Descobrimos, pelas redes sociais, que pessoas que amamos podem ser chatas pra caramba. A partir de postagens de memes, discursos de ódio, notícias falsas e manifestações, começamos a rotular amigos e parentes em lados distintos do espectro político - como se, de fato, só existissem dois.

No entanto, até o começo do ano passado, ainda tínhamos as festas familiares, os almoços dominicais e encontros esporádicos traziam de volta a revelação de outros lados dessas pessoas. Ali, entretidos em temas mais complexos e, muitas vezes, mais importantes, éramos conduzidos ao sentimento comum de afeto e carinho que nos unia de forma mais profunda. Nessas horas, a vida, essa coisa 3D e complexa, quando saltavam coisas no meio da sala, impunha suas teias, nos convocava à realidade, trazia à tona as lembranças e memórias.

O encontro nos forçava ao toque, forçava o tempo diante do outro, na experiência que coloca à prova nossa valentia, nossas ideias, nos expunha ao debate e fazia escorrer pelo ralo alguns dos argumentos vazios que nutrimos. Olhos nos olhos, deixávamos de lado por um tempo nossas armas, escudos e máscaras e nos permitíamos ser envolvidos pelo abraço reconciliador e pela lembrança das semelhanças que nos unem.

Hoje, vestimos máscaras. Distantes uns dos outros, reduzimos nosso contato ao ambiente virtual, onde o outro é irritante demais. Durante a pandemia, a vida virou tela e só nos restou do outro o que é ruim. A vida agora não é mais tridimensional, é só tela, tela, tela, sem as histórias, as tramas, encontros ao acaso, sem chance para o toque, sem a possibilidade de estarmos face a face diante do outro para espremer nossas diferenças. A tela é um abismo.

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É a distância que nos separa.

Nesses tempos, ligo a tv e só quero assistir comédias e filmes de super-heróis. Em 2D, claro. Sem fé nas autoridades, sem sinal de esperança ou de fumaça, tenho esperado ansioso pela chegada dos Vingadores ou do Flash para nos salvar. Ou do Sheldon. Porque o exercício do perdão, da compaixão e o esforço pela tolerância andam um bocado mais difíceis. Faltam abraços. Encarar o outro através de uma tela, exige uma nova dimensão de relacionamento, implica enxergar o que não queremos, porque pode revelar muito do que... de quem... de nós... A tela é um espelho.

Opinião por Luiz Henrique Matos

É escritor e publicitário. Autor dos livros “Enquanto a gente se distrai, o tempo foge” e "Nem que a vaca tussa!" e criador do canal Frases de Crianças.

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