Quero o mato e os bichos de volta, por amor a SP

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Por Henrique de Carvalho
Atualização:

Ilustração do autor (Henrique de Carvalho)  

Vinte e cinco de janeiro foi aniversário da cidade de São Paulo. Tirei o dia para pensar em muitas coisas e incluí a cidade em minhas reflexões.

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Há 466 anos, quase meio milênio, tentam ordenar platonicamente esse território adotando parâmetros culturais humanos e não funcionou, pois é impossível regular uma natureza cuja única ordem é o caos. 

Adotando um outro caminho, podemos reconhecer que o modo antigo não deu certo e abraçar a ordem natural das coisas plantando mais árvores, muitas, a fim de reflorestar todo território habitado. A natureza mais solta vai comer essa cidade cimentada e suja e poderemos, enfim, construí-la de outra forma.

Não temos como só reformar o que está executado. A escala é grande demais e a cidade deu um nó difícil de desfazer.

A circulação está travada, o transporte público não atende com eficiência, o metrô há mais de uma década sofre com a superlotação de determinados horários. Linhas de ônibus foram reduzidas e ciclovias eliminadas -- até as do fim de semana! Áreas de mananciais seguem cada vez mais ocupadas, negociadas e loteadas irregularmente -- todo mundo sabe dos problemas mas ninguém faz nada, preferem falar de asfalto.

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Chove e as calçadas não têm espaço para duas pessoas de guarda chuvas. Andamos como um dançarino de frevo pra lá e pra cá tentando seguir em frente, mas os buracos não deixam. São poças de lama a reforçar nossa dança brava. Qualquer garoa paralisa os faróis e a gente já acha até normal. A cidade para. Tiraram o acento diferencial de "pára", do verbo parar, um absurdo. A internet cai e só volta dali a um dia.Os mesmo lugares alagam de novo e alagarão novamente. 

Estoura uma caixa de energia na rua. 

Às vezes apaga tudo, às vezes apaga em outro lugar. A eleição para prefeito aponta, nos primeiros lugares das pesquisas, o populismo demagógico-midiático-mundo-cão assumindo a gestão municipal. A gente pede pra sofrer.

As coisas ficam nos lugares errados. Até o que é perto é longe. Nunca seu problema será resolvido -- às vezes é resolvido, mas o prazo tende ao nunca e sempre falta um documento. Pra quê tanto documento se todo mundo está fora da lei em algum aspecto? Tudo demora e a gente só corre. Talvez se fizéssemos com calma acertaríamos de primeira.

Na hora de atravessar a rua nós corremos. O farol é sincronizado com a pressa dos carros, não com a caminhada dos pedestres. O risco de morrer atropelado é real. Corremos pra fugir dos assaltos, cujo risco aumenta à medida que nos expomos e cruzamos mais pessoas que correm com medo de serem assaltadas porque o risco aumenta à medida em que elas se expõe e cruzam com pessoas que correm delas. Quase diariamente sei de alguém que foi roubado. 

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Aqui é legal dizer que tá correndo, parece que isso é bom, afinal, é São Paulo, não tem nuvens nem estrelas, é um ar de Batman, faz barulho, buzinam, quebram lajes, calçadas, te empurram, é legal, São Paulo é legal, tem de tudo e nunca tem o que você precisa. Somos empurrados pra correr, pra fazer andar, pra dar um passo pro lado, pra se apertar, pra dar o fora, pra descer logo, pra ficar encostando -- que hábito insalubre esse de ficar se encostando! 

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Respiramos fumaça e quando saímos da cidade abrimos os vidros dos carros para desfrutar do ar de verdade, puro, enchemos os pulmões. Aí voltamos e aceitamos o ar que há. 

Na Avenida Paulista, onde os apressados mais respiram fundo, ofegantes, há aquele fedor de palo-santo nas barraquinhas perto das esquinas. Tenho certeza de que isso sinaliza alguma coisa suspeita que a turma está deixando passar. É impossível que as pessoas realmente gostem do cheiro desse treco.

A gente vai ao restaurante e entra numa linha de montagem. Assim que a comida é entregue precisamos comer, tomar café e pagar a conta no ritmo deles. Ninguém te deixa em paz. Mesmo com mesas vazias, não importa, querem te ver indo embora, sem tempo de conversar consigo ou com sua companhia, sem tempo de pensar e compreender os sabores ou mesmo de abrir um livro e dar um tempo ali naquele lugar diferente, saboreando um café. "-- Calma, já estou indo embora!" Apressam-se em mandar embora o cliente que tão bem dizem atender. Sucesso é socar comida na pessoa e botar pra fora rapidinho.

Precisamos urgentemente reflorestar a cidade, entregar a gestão para o caos natural. Prefiro que ele imponha sua ordem pra depois a gente só manejar com cuidado: um pedaço de floresta aqui, uns 3 prédios ali naquele outro pedaço, outra floresta por ali, umas ruas subterrâneas, um parque nomeio da mata pra caminhar, umas araras no quintal de casa, onça no vizinho, macacos, tucanos, capivaras na beira dos rios, nascentes pra nadar.

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Eu nunca autorizei cortarem as árvores, nunca permiti que roubassem o ar bom de respirar, a natureza pujante, as frutas grátis, os rios da cidade. Nunca deixei sujarem nossa água, mudarem os cursos dos rios, canalizá-los, concretar as calçadas, estragar as fachadas, botar grades, tomarem minhas ruas pros carros. Nunca admiti que espantassem os bichos pra longe.

Sem bicho e sem mato, esquecemos de demandar a diversidade e a convivência com as outras espécies.

Por amor a São Paulo, lugar em que vivo, quero a natureza de volta.

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