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Fones de ouvido, livrarias e minha ignorância

Por Henrique de Carvalho
Atualização:

Foto do autor.  

Saio para caminhar. Sempre o faço, por mais que ultimamente tenha reduzido a frequência.

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Noto a cidade lotada. Toda hora é uma muvuca para atravessar e todo lugar está cheio de gente. Paro pra tomar um café ou um suco. O volume dos fones de ouvido garante maior independência da confusão sonora ao redor. Dos esbarrões já não há muito como se preservar. Esse é um problema de arquitetura e só se resolve na implantação. Então vou e me implanto naquele cantinho mais reservado, longe da fila e perto das pessoas que comem. Ali é sempre mais calmo.

Quando saio pra caminhar saio pra pensar, olhar a cidade à minha volta e torço para serem as pausas tão agradáveis que tornem desnecessário o acionamento de meu escudo sonoro. Costumo ouvir música durante, mas às vezes pauso e fico sem ela por algum tempo. Andar o tempo todo com fones de ouvido ligados nos tira dos sons do instante externo e nos põe em um filme razoavelmente desconhecido, cuja trilha sonora é de nossa responsabilidade, mas a atuação não. Sem intenção, os de fones começaram a criar cidades distintas. Não bastasse a distinção de nossa sensibilidade já criá-las desde sempre, os sons individualizados, em especial a música, vêm reforçar a realidade de haver realidades, assim mesmo, no plural, convivendo num mesmo espaço.

Por isso talvez tiremos os fones quando estamos em ambiente habitual: entre amigos, em casa ou com aqueles com os quais compartilhamos alguma afinidade. Como não basta a mera ambiência territorial, precisamos nos conectar aos outros pelas ambiências das afinidades. Além dos temas da conversa, importam também o tom de voz e o ritmo do que é falado. Coabitam, portanto, cidades feitas de significado e sobrepostas umas às outras, no mesmo espaço. Quando não quero estar em outra cidade que não na minha, editada, instintivamente ligo meus fones de ouvido. Enquanto meu corpo ocupa certo volume físico em um lugar qualquer, busco a trilha que simulará um pouco de pertencimento.

Paro e volto a andar. É um movimento intermitente entre pensar e sair de si para depois voltar pensando as imagens em movimento que acabo de experimentar. Às vezes a trilha sonora me leva a andar várias vezes o mesmo trajeto experimentando diferentes cidades. O mesmo nos faz o canto de algum pássaro. Às quatro da madrugada tem sempre um sabiá acordando pra trabalhar antes da hora.

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Visito minhas livrarias no meio das caminhadas. Meu café favorito é dentro de uma delas, mais reservada, quieta e com jeito de biblioteca. Penso que devia operar vinte e quatro horas, para me socorrer sempre que precisasse viver a materialização de minha ignorância, envolto por aquele monte de livros não lidos e desconhecidos. Suportes digitais ainda são incapazes de fazer isso comigo. Só uma boa livraria ou biblioteca de verdade podem proporcionar esta experiência.

Talvez por isso, numa livraria, as pessoas caladas sejam mais sábias. Interessam-se pelos livros sem precisar falar todo o tempo a respeito de si mesmas, estimuladas pelas capas.

Ao fim da tarde, desço a ladeira de volta pra casa. Vejo senhoras nas farmácias, e o comércio ao redor começa a fechar. Casais vão ao supermercado, uns moços olham vitrines acesas de lojas de sapatos junto à calçada, donos acompanham seus cães num breve passeio até a padaria, e ainda tem gente no bar.

Vai anoitecendo.

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