Brasília, 60 anos: o que deu certo? _ parte I


Por Henrique de Carvalho
Ilustração do autor (Henrique de Carvalho)  

O aniversário de 60 anos da fundação de Brasília não pode passar em branco.

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Dada sua excepcionalidade, única cidade planejada a partir dos preceitos modernistas em todo o mundo, podemos sem dúvida afirmar que se trate da experiência urbana mais importante do século XX.

Seu ineditismo é cheio de problemas e soluções destacáveis. Se os problemas têm origens difusas, podemos creditar talvez todos os seus acertos ao projeto urbanístico elaborado por Lúcio Costa e ao protagonismo plástico de Oscar Niemeyer.

Este texto é parte de uma série de seis, comentando diversos pontos da capital brasileira.

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01. Coisas que deram certo

No que diz respeito à experiências bem sucedidas em Brasília, uma das mais inegáveis é a clareza e objetividade de seu sistema viário. Sim, há críticas ao planejamento dependente dos carros, mas isso comentarei mais adiante. 

O fato é que seu traçado lindíssimo é autoexplicativo para quem lá vive. Isso facilita o deslocamento e, uma vez com o endereço em mãos, qualquer pessoa familiarizada com sua notação codificada saberá para onde se dirigir. Qualquer orientação de destino lá inclui setor, sentido (Norte, Sul, Leste, Oeste) e um número -- identificando de que lado do eixo fica o destino e a quantas quadras está, paralelamente ao eixo de referência.

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A implantação acomodada ao lago Paranoá, se não resolve, ameniza o clima seco do planalto. Sem ele as conhecidas temporadas secas na cidade seriam ainda mais críticas.

Seu desenho forte não é apenas funcional, mas belíssimo. Quando os eixos se cruzam, há aqueles arcos de transição como os que encontramos em qualquer estrada, mas que em Brasília são postos com intenção plástica, dimensionados para terem efeito plástico, tornando os fluxos da cidade em arte cinética. Não por acaso, há inúmeros vídeos associando justamente estes movimentos aos arcos sonoros de improvisos e peças musicais inspirados na cidade. É uma circulação bela por si só.

A ideia das superquadras também deu certo, como arranjo geral. Há problemas pontuais, tratados mais adiante, mas concentrar o dimensionamento de uma população regular -- ou seja, sem super-adensar -- em prédios de proporção bem equilibrada com o espaço da quadra, possibilitou transferir a circulação de pedestres da calçada externa para uma praça interna, arborizada, nesta quadra maior à sombra dos edifícios e à vista de todos. 

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Nelas os carros ficam segregados, como se em atracadouros, e percursos menores são feitos a pé, por baixo dos pilotis, onde tudo é espaço público bem ajardinado e até o porte e o reflexo das árvores adultas estão harmonizados com os edifícios habitacionais. As superquadras modelo, por exemplo, tem prédios projetados por Lúcio Costa -- um craque no projeto de habitação em altura, diga-se de passagem --, paisagismo do Burle-Marx e edifícios de uso cívico (escolas, capelas) de Oscar Niemeyer. Só pelas assinaturas, estas superquadras jamais dariam errado.

Isso faz pensar em nossas cidades mal planejadas. Por quê precisamos circular ainda hoje em calçadas ao lado de carros? Por quê não temos ruas atracadouros, a cada quatro ou oito quarteirões, e circulações arborizadas, exclusivas para pedestres, levando-os aos prédios e ao comércio local por dentro de parques e praças bem ajardinadas? Inevitavelmente migraremos para isto em algum momento, principalmente depois de os carros autônomos tornarem-se a regra para o uso de automóveis ("auto-móveis" de fato), mas deve levar ainda uns trinta anos nos países desenvolvidos e, no Brasil, bem mais. Cidades como Portland e Berlim já tem planos bem desenhados para se transformarem neste sentido, em algo próximo às superquadras.

A escala da cidade deu certo. É apropriada para uma capital, principalmente no eixo monumental. Pouquíssimos países têm uma capital com a qualidade imagética de Brasília. Alguns estrangeiros podem até achar que nossa capital seja Buenos Aires, mas se mostrarmos a foto de Brasília sem dizer o nome, eles saberão que é a capital do Brasil. 

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Niemeyer desenhou o cenário apropriado para a liturgia do poder em um Estado moderno e democrático, com suas instituições bem demarcadas ao mesmo tempo que desenhada a partir de elementos comuns arranjados de maneira distinta para cada situação. A repetição de arcos, planos finíssimos, pilares delicados e caixas que parecem flutuar não são mero capricho formal. Brasília é um discurso apropriado para uma capital. Temos de ter orgulho disso que é fruto da qualidade da arquitetura de Oscar Niemeyer, só possível diante da sobreposição de inumeráveis fatores bastante especiais.

Outra virtude de nossa capital é a presença maciça das construções de Oscar Niemeyer. Por muito tempo arquitetos enciumados criticavam as restrições impostas para que outros profissionais desenhassem os edifícios cívicos da cidade. Entretanto, é uma crítica que só se justifica de imediato pois, mesmo que a postura fosse dura, é inegável o valor superlativo de um conjunto tão abundante assinado por Niemeyer e em condições muito especiais, onde teve um campo de ação livre para realizar sua poesia de formas e surpresas. Enquanto ele viveu, e viveu muito, arquitetos reclamaram o direito de contribuir, mas isto seria deixar de comprar um quadro de Miró para apostar em nosso vizinho do apartamento de cima, que não é Picasso, apesar da boa vontade. Ainda que o preço tenha sido alto, num sentido histórico teremos para sempre um museu cheio de projetos do Oscar em nossa capital.

Outras coisas que deram certo em Brasília são a abundância de edifícios culturais e de uso cívico. Como capital ela deve estar equipada. Em termos de curadoria não se pode garantir a constância e a qualidade de sua gestão. Mas só de haver os edifícios e a possibilidade de seus usos já se pode afirmar que isto seria positivo para qualquer cidade.

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Tenho orgulho de nossa capital ser Brasília, esta cidade de desenho tão especial, feita por Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e inúmeros artistas e candangos convocados para contribuir para a imagem de um Brasil moderno. Ainda que este não o seja, a cidade, peça construída, está lá, esperando que um dia a mereçamos em toda sua novidade.

Ilustração do autor (Henrique de Carvalho)  

O aniversário de 60 anos da fundação de Brasília não pode passar em branco.

Dada sua excepcionalidade, única cidade planejada a partir dos preceitos modernistas em todo o mundo, podemos sem dúvida afirmar que se trate da experiência urbana mais importante do século XX.

Seu ineditismo é cheio de problemas e soluções destacáveis. Se os problemas têm origens difusas, podemos creditar talvez todos os seus acertos ao projeto urbanístico elaborado por Lúcio Costa e ao protagonismo plástico de Oscar Niemeyer.

Este texto é parte de uma série de seis, comentando diversos pontos da capital brasileira.

01. Coisas que deram certo

No que diz respeito à experiências bem sucedidas em Brasília, uma das mais inegáveis é a clareza e objetividade de seu sistema viário. Sim, há críticas ao planejamento dependente dos carros, mas isso comentarei mais adiante. 

O fato é que seu traçado lindíssimo é autoexplicativo para quem lá vive. Isso facilita o deslocamento e, uma vez com o endereço em mãos, qualquer pessoa familiarizada com sua notação codificada saberá para onde se dirigir. Qualquer orientação de destino lá inclui setor, sentido (Norte, Sul, Leste, Oeste) e um número -- identificando de que lado do eixo fica o destino e a quantas quadras está, paralelamente ao eixo de referência.

A implantação acomodada ao lago Paranoá, se não resolve, ameniza o clima seco do planalto. Sem ele as conhecidas temporadas secas na cidade seriam ainda mais críticas.

Seu desenho forte não é apenas funcional, mas belíssimo. Quando os eixos se cruzam, há aqueles arcos de transição como os que encontramos em qualquer estrada, mas que em Brasília são postos com intenção plástica, dimensionados para terem efeito plástico, tornando os fluxos da cidade em arte cinética. Não por acaso, há inúmeros vídeos associando justamente estes movimentos aos arcos sonoros de improvisos e peças musicais inspirados na cidade. É uma circulação bela por si só.

A ideia das superquadras também deu certo, como arranjo geral. Há problemas pontuais, tratados mais adiante, mas concentrar o dimensionamento de uma população regular -- ou seja, sem super-adensar -- em prédios de proporção bem equilibrada com o espaço da quadra, possibilitou transferir a circulação de pedestres da calçada externa para uma praça interna, arborizada, nesta quadra maior à sombra dos edifícios e à vista de todos. 

Nelas os carros ficam segregados, como se em atracadouros, e percursos menores são feitos a pé, por baixo dos pilotis, onde tudo é espaço público bem ajardinado e até o porte e o reflexo das árvores adultas estão harmonizados com os edifícios habitacionais. As superquadras modelo, por exemplo, tem prédios projetados por Lúcio Costa -- um craque no projeto de habitação em altura, diga-se de passagem --, paisagismo do Burle-Marx e edifícios de uso cívico (escolas, capelas) de Oscar Niemeyer. Só pelas assinaturas, estas superquadras jamais dariam errado.

Isso faz pensar em nossas cidades mal planejadas. Por quê precisamos circular ainda hoje em calçadas ao lado de carros? Por quê não temos ruas atracadouros, a cada quatro ou oito quarteirões, e circulações arborizadas, exclusivas para pedestres, levando-os aos prédios e ao comércio local por dentro de parques e praças bem ajardinadas? Inevitavelmente migraremos para isto em algum momento, principalmente depois de os carros autônomos tornarem-se a regra para o uso de automóveis ("auto-móveis" de fato), mas deve levar ainda uns trinta anos nos países desenvolvidos e, no Brasil, bem mais. Cidades como Portland e Berlim já tem planos bem desenhados para se transformarem neste sentido, em algo próximo às superquadras.

A escala da cidade deu certo. É apropriada para uma capital, principalmente no eixo monumental. Pouquíssimos países têm uma capital com a qualidade imagética de Brasília. Alguns estrangeiros podem até achar que nossa capital seja Buenos Aires, mas se mostrarmos a foto de Brasília sem dizer o nome, eles saberão que é a capital do Brasil. 

Niemeyer desenhou o cenário apropriado para a liturgia do poder em um Estado moderno e democrático, com suas instituições bem demarcadas ao mesmo tempo que desenhada a partir de elementos comuns arranjados de maneira distinta para cada situação. A repetição de arcos, planos finíssimos, pilares delicados e caixas que parecem flutuar não são mero capricho formal. Brasília é um discurso apropriado para uma capital. Temos de ter orgulho disso que é fruto da qualidade da arquitetura de Oscar Niemeyer, só possível diante da sobreposição de inumeráveis fatores bastante especiais.

Outra virtude de nossa capital é a presença maciça das construções de Oscar Niemeyer. Por muito tempo arquitetos enciumados criticavam as restrições impostas para que outros profissionais desenhassem os edifícios cívicos da cidade. Entretanto, é uma crítica que só se justifica de imediato pois, mesmo que a postura fosse dura, é inegável o valor superlativo de um conjunto tão abundante assinado por Niemeyer e em condições muito especiais, onde teve um campo de ação livre para realizar sua poesia de formas e surpresas. Enquanto ele viveu, e viveu muito, arquitetos reclamaram o direito de contribuir, mas isto seria deixar de comprar um quadro de Miró para apostar em nosso vizinho do apartamento de cima, que não é Picasso, apesar da boa vontade. Ainda que o preço tenha sido alto, num sentido histórico teremos para sempre um museu cheio de projetos do Oscar em nossa capital.

Outras coisas que deram certo em Brasília são a abundância de edifícios culturais e de uso cívico. Como capital ela deve estar equipada. Em termos de curadoria não se pode garantir a constância e a qualidade de sua gestão. Mas só de haver os edifícios e a possibilidade de seus usos já se pode afirmar que isto seria positivo para qualquer cidade.

Tenho orgulho de nossa capital ser Brasília, esta cidade de desenho tão especial, feita por Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e inúmeros artistas e candangos convocados para contribuir para a imagem de um Brasil moderno. Ainda que este não o seja, a cidade, peça construída, está lá, esperando que um dia a mereçamos em toda sua novidade.

Ilustração do autor (Henrique de Carvalho)  

O aniversário de 60 anos da fundação de Brasília não pode passar em branco.

Dada sua excepcionalidade, única cidade planejada a partir dos preceitos modernistas em todo o mundo, podemos sem dúvida afirmar que se trate da experiência urbana mais importante do século XX.

Seu ineditismo é cheio de problemas e soluções destacáveis. Se os problemas têm origens difusas, podemos creditar talvez todos os seus acertos ao projeto urbanístico elaborado por Lúcio Costa e ao protagonismo plástico de Oscar Niemeyer.

Este texto é parte de uma série de seis, comentando diversos pontos da capital brasileira.

01. Coisas que deram certo

No que diz respeito à experiências bem sucedidas em Brasília, uma das mais inegáveis é a clareza e objetividade de seu sistema viário. Sim, há críticas ao planejamento dependente dos carros, mas isso comentarei mais adiante. 

O fato é que seu traçado lindíssimo é autoexplicativo para quem lá vive. Isso facilita o deslocamento e, uma vez com o endereço em mãos, qualquer pessoa familiarizada com sua notação codificada saberá para onde se dirigir. Qualquer orientação de destino lá inclui setor, sentido (Norte, Sul, Leste, Oeste) e um número -- identificando de que lado do eixo fica o destino e a quantas quadras está, paralelamente ao eixo de referência.

A implantação acomodada ao lago Paranoá, se não resolve, ameniza o clima seco do planalto. Sem ele as conhecidas temporadas secas na cidade seriam ainda mais críticas.

Seu desenho forte não é apenas funcional, mas belíssimo. Quando os eixos se cruzam, há aqueles arcos de transição como os que encontramos em qualquer estrada, mas que em Brasília são postos com intenção plástica, dimensionados para terem efeito plástico, tornando os fluxos da cidade em arte cinética. Não por acaso, há inúmeros vídeos associando justamente estes movimentos aos arcos sonoros de improvisos e peças musicais inspirados na cidade. É uma circulação bela por si só.

A ideia das superquadras também deu certo, como arranjo geral. Há problemas pontuais, tratados mais adiante, mas concentrar o dimensionamento de uma população regular -- ou seja, sem super-adensar -- em prédios de proporção bem equilibrada com o espaço da quadra, possibilitou transferir a circulação de pedestres da calçada externa para uma praça interna, arborizada, nesta quadra maior à sombra dos edifícios e à vista de todos. 

Nelas os carros ficam segregados, como se em atracadouros, e percursos menores são feitos a pé, por baixo dos pilotis, onde tudo é espaço público bem ajardinado e até o porte e o reflexo das árvores adultas estão harmonizados com os edifícios habitacionais. As superquadras modelo, por exemplo, tem prédios projetados por Lúcio Costa -- um craque no projeto de habitação em altura, diga-se de passagem --, paisagismo do Burle-Marx e edifícios de uso cívico (escolas, capelas) de Oscar Niemeyer. Só pelas assinaturas, estas superquadras jamais dariam errado.

Isso faz pensar em nossas cidades mal planejadas. Por quê precisamos circular ainda hoje em calçadas ao lado de carros? Por quê não temos ruas atracadouros, a cada quatro ou oito quarteirões, e circulações arborizadas, exclusivas para pedestres, levando-os aos prédios e ao comércio local por dentro de parques e praças bem ajardinadas? Inevitavelmente migraremos para isto em algum momento, principalmente depois de os carros autônomos tornarem-se a regra para o uso de automóveis ("auto-móveis" de fato), mas deve levar ainda uns trinta anos nos países desenvolvidos e, no Brasil, bem mais. Cidades como Portland e Berlim já tem planos bem desenhados para se transformarem neste sentido, em algo próximo às superquadras.

A escala da cidade deu certo. É apropriada para uma capital, principalmente no eixo monumental. Pouquíssimos países têm uma capital com a qualidade imagética de Brasília. Alguns estrangeiros podem até achar que nossa capital seja Buenos Aires, mas se mostrarmos a foto de Brasília sem dizer o nome, eles saberão que é a capital do Brasil. 

Niemeyer desenhou o cenário apropriado para a liturgia do poder em um Estado moderno e democrático, com suas instituições bem demarcadas ao mesmo tempo que desenhada a partir de elementos comuns arranjados de maneira distinta para cada situação. A repetição de arcos, planos finíssimos, pilares delicados e caixas que parecem flutuar não são mero capricho formal. Brasília é um discurso apropriado para uma capital. Temos de ter orgulho disso que é fruto da qualidade da arquitetura de Oscar Niemeyer, só possível diante da sobreposição de inumeráveis fatores bastante especiais.

Outra virtude de nossa capital é a presença maciça das construções de Oscar Niemeyer. Por muito tempo arquitetos enciumados criticavam as restrições impostas para que outros profissionais desenhassem os edifícios cívicos da cidade. Entretanto, é uma crítica que só se justifica de imediato pois, mesmo que a postura fosse dura, é inegável o valor superlativo de um conjunto tão abundante assinado por Niemeyer e em condições muito especiais, onde teve um campo de ação livre para realizar sua poesia de formas e surpresas. Enquanto ele viveu, e viveu muito, arquitetos reclamaram o direito de contribuir, mas isto seria deixar de comprar um quadro de Miró para apostar em nosso vizinho do apartamento de cima, que não é Picasso, apesar da boa vontade. Ainda que o preço tenha sido alto, num sentido histórico teremos para sempre um museu cheio de projetos do Oscar em nossa capital.

Outras coisas que deram certo em Brasília são a abundância de edifícios culturais e de uso cívico. Como capital ela deve estar equipada. Em termos de curadoria não se pode garantir a constância e a qualidade de sua gestão. Mas só de haver os edifícios e a possibilidade de seus usos já se pode afirmar que isto seria positivo para qualquer cidade.

Tenho orgulho de nossa capital ser Brasília, esta cidade de desenho tão especial, feita por Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e inúmeros artistas e candangos convocados para contribuir para a imagem de um Brasil moderno. Ainda que este não o seja, a cidade, peça construída, está lá, esperando que um dia a mereçamos em toda sua novidade.

Ilustração do autor (Henrique de Carvalho)  

O aniversário de 60 anos da fundação de Brasília não pode passar em branco.

Dada sua excepcionalidade, única cidade planejada a partir dos preceitos modernistas em todo o mundo, podemos sem dúvida afirmar que se trate da experiência urbana mais importante do século XX.

Seu ineditismo é cheio de problemas e soluções destacáveis. Se os problemas têm origens difusas, podemos creditar talvez todos os seus acertos ao projeto urbanístico elaborado por Lúcio Costa e ao protagonismo plástico de Oscar Niemeyer.

Este texto é parte de uma série de seis, comentando diversos pontos da capital brasileira.

01. Coisas que deram certo

No que diz respeito à experiências bem sucedidas em Brasília, uma das mais inegáveis é a clareza e objetividade de seu sistema viário. Sim, há críticas ao planejamento dependente dos carros, mas isso comentarei mais adiante. 

O fato é que seu traçado lindíssimo é autoexplicativo para quem lá vive. Isso facilita o deslocamento e, uma vez com o endereço em mãos, qualquer pessoa familiarizada com sua notação codificada saberá para onde se dirigir. Qualquer orientação de destino lá inclui setor, sentido (Norte, Sul, Leste, Oeste) e um número -- identificando de que lado do eixo fica o destino e a quantas quadras está, paralelamente ao eixo de referência.

A implantação acomodada ao lago Paranoá, se não resolve, ameniza o clima seco do planalto. Sem ele as conhecidas temporadas secas na cidade seriam ainda mais críticas.

Seu desenho forte não é apenas funcional, mas belíssimo. Quando os eixos se cruzam, há aqueles arcos de transição como os que encontramos em qualquer estrada, mas que em Brasília são postos com intenção plástica, dimensionados para terem efeito plástico, tornando os fluxos da cidade em arte cinética. Não por acaso, há inúmeros vídeos associando justamente estes movimentos aos arcos sonoros de improvisos e peças musicais inspirados na cidade. É uma circulação bela por si só.

A ideia das superquadras também deu certo, como arranjo geral. Há problemas pontuais, tratados mais adiante, mas concentrar o dimensionamento de uma população regular -- ou seja, sem super-adensar -- em prédios de proporção bem equilibrada com o espaço da quadra, possibilitou transferir a circulação de pedestres da calçada externa para uma praça interna, arborizada, nesta quadra maior à sombra dos edifícios e à vista de todos. 

Nelas os carros ficam segregados, como se em atracadouros, e percursos menores são feitos a pé, por baixo dos pilotis, onde tudo é espaço público bem ajardinado e até o porte e o reflexo das árvores adultas estão harmonizados com os edifícios habitacionais. As superquadras modelo, por exemplo, tem prédios projetados por Lúcio Costa -- um craque no projeto de habitação em altura, diga-se de passagem --, paisagismo do Burle-Marx e edifícios de uso cívico (escolas, capelas) de Oscar Niemeyer. Só pelas assinaturas, estas superquadras jamais dariam errado.

Isso faz pensar em nossas cidades mal planejadas. Por quê precisamos circular ainda hoje em calçadas ao lado de carros? Por quê não temos ruas atracadouros, a cada quatro ou oito quarteirões, e circulações arborizadas, exclusivas para pedestres, levando-os aos prédios e ao comércio local por dentro de parques e praças bem ajardinadas? Inevitavelmente migraremos para isto em algum momento, principalmente depois de os carros autônomos tornarem-se a regra para o uso de automóveis ("auto-móveis" de fato), mas deve levar ainda uns trinta anos nos países desenvolvidos e, no Brasil, bem mais. Cidades como Portland e Berlim já tem planos bem desenhados para se transformarem neste sentido, em algo próximo às superquadras.

A escala da cidade deu certo. É apropriada para uma capital, principalmente no eixo monumental. Pouquíssimos países têm uma capital com a qualidade imagética de Brasília. Alguns estrangeiros podem até achar que nossa capital seja Buenos Aires, mas se mostrarmos a foto de Brasília sem dizer o nome, eles saberão que é a capital do Brasil. 

Niemeyer desenhou o cenário apropriado para a liturgia do poder em um Estado moderno e democrático, com suas instituições bem demarcadas ao mesmo tempo que desenhada a partir de elementos comuns arranjados de maneira distinta para cada situação. A repetição de arcos, planos finíssimos, pilares delicados e caixas que parecem flutuar não são mero capricho formal. Brasília é um discurso apropriado para uma capital. Temos de ter orgulho disso que é fruto da qualidade da arquitetura de Oscar Niemeyer, só possível diante da sobreposição de inumeráveis fatores bastante especiais.

Outra virtude de nossa capital é a presença maciça das construções de Oscar Niemeyer. Por muito tempo arquitetos enciumados criticavam as restrições impostas para que outros profissionais desenhassem os edifícios cívicos da cidade. Entretanto, é uma crítica que só se justifica de imediato pois, mesmo que a postura fosse dura, é inegável o valor superlativo de um conjunto tão abundante assinado por Niemeyer e em condições muito especiais, onde teve um campo de ação livre para realizar sua poesia de formas e surpresas. Enquanto ele viveu, e viveu muito, arquitetos reclamaram o direito de contribuir, mas isto seria deixar de comprar um quadro de Miró para apostar em nosso vizinho do apartamento de cima, que não é Picasso, apesar da boa vontade. Ainda que o preço tenha sido alto, num sentido histórico teremos para sempre um museu cheio de projetos do Oscar em nossa capital.

Outras coisas que deram certo em Brasília são a abundância de edifícios culturais e de uso cívico. Como capital ela deve estar equipada. Em termos de curadoria não se pode garantir a constância e a qualidade de sua gestão. Mas só de haver os edifícios e a possibilidade de seus usos já se pode afirmar que isto seria positivo para qualquer cidade.

Tenho orgulho de nossa capital ser Brasília, esta cidade de desenho tão especial, feita por Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e inúmeros artistas e candangos convocados para contribuir para a imagem de um Brasil moderno. Ainda que este não o seja, a cidade, peça construída, está lá, esperando que um dia a mereçamos em toda sua novidade.

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