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Visões crônicas do dia a dia

O poder sem pudor

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Por Haisem Abaki
Atualização:

Entrei no metrô na estação Palmeiras-Barra Funda no sentido Corinthians-Itaquera. No meio da tarde ainda não estava lotado, mas o único assento disponível era um preferencial.E lá me acomodei.

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Na segunda parada, surgiu um senhor de cabelos brancos com uma pasta debaixo do braço. Levantei para ceder a vaga e ele agradeceu dizendo que não precisava. Ia descer logo. Insisti e acabou aceitando, demonstrando ainda mais gratidão e sorrindo.

Já sentado, o homem se ofereceu para segurar minha mochila. Fui educado, mas recusei. Aí ele abriu a pasta, olhou o que pareciam ser documentos ou contas e guardou tudo de novo. Depois se virou para mim e disse que era um "office old" porque não conseguia viver só da aposentadoria. Balancei a cabeça concordando e acho que foi um sinal para animar o simpático idoso a engatar um papo.

- A gente fica velho, mas não pode parar. Tem que pagar as contas, né?

Balancei a cabeça de novo.

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- E enquanto a gente trabalha tem um bando de político ladrão roubando o Brasil.

E eu balançando a cabeça outra vez.

Hoje eu dei dez reais na padaria e a moça achou que era nota de vinte e me deu o troco errado. Eu devolvi porque tenho vergonha na cara. Esses políticos não têm vergonha na cara.

Outra balançada de cabeça.

Três estações adiante o indignado idoso se despediu e desembarcou.

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Aquela conversa me levou de volta no tempo, para quando eu tinha 14 ou 15 anos. Meu pai já tinha se aposentado e começou a vender pão sírio para "os batrícios" para ter uma renda extra e passar o tempo. E eu ia junto.

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Pegávamos os pacotes com um velho padeiro, já cansado das andanças de porta em porta, que transferiu parte do negócio para o meu pai. E, a bordo da Brasília verde e ouvindo rádio o tempo todo, passávamos pelas casas e "lodjinias" em São Miguel, Itaim Paulista, Ferraz de Vasconcelos, Poá, Suzano e Mogi das Cruzes.

Quando havia lugar para estacionar, meu pai descia e entregava. Mas em muitas vezes a tarefa era minha e ele sempre mandava um abraço para o freguês e algum recado do tipo "bassa lá em casa". Eu seguia as orientações, entregava o pão, recebia sempre em dinheiro e levava para o seu Mohamed.

Um dia, no centro de Poá, ele me esperava no carro e viu pelo retrovisor que eu voltei para uma loja de móveis onde já havia feito a  entrega. Quando retornei, o "turco" quis saber o que tinha acontecido.

- A funcionária deu dinheiro a mais e eu fui devolver.

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- Bor que você fez isso? Bresta ben antençón no resbosta que você vai dá...

- Ué, porque o dinheiro não era meu...

- Só bor causa disso? Bensa bem...

- Porque é o certo...

- Só bor causa disso? Bensa... O que você sente se nún devolllve a diniero?

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- Ué, sei lá... Vergonha?

- Isso, munto bom. Ieu fica munto orgulhoso. Mas nún esquece nunca disso... A gente brecisa de vergonia na vida. Se a gente berde a vergonia, entón berde tudo!

Entendi a lição já faz tempo, mas ela me veio com mais força e sotaque nos dias seguintes, no rádio, quando coloquei no ar as "justificativas" de "inocentes" e seus caríssimos advogados, sempre negando tudo, sempre perseguidos injustamente, coitados. Um deserto de vergonha suprapartidária, do petrolão ao merendão.

Percebi que talvez esteja mais velho e chato, completamente descrente, pensando e falando com o fígado. E o fígado também não se conforma com a arrogância de quem se julga acima do bem e do mal, blindado contra qualquer suspeita, o mais honesto dos seres vivos. Enfim, a falta de vergonha e a arrogância são irmãs gêmeas que zombam da inteligência dos que consideram tolos, despertando o apoio fanático das torcidas organizadas raivosas.

Mais tarde contei para o neto e a neta do "turco"a história do idoso do metrô e do moleque entregador de pão sírio. Perguntei aos dois o que fariam se recebessem dinheiro a mais. E eles fariam o certo... Se bem que nunca tive essa dúvida.

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Isso é munto bom! Fiquei cón esberança de novo. Bequenininha, mas é esberança. Viva a vergonia! Mais vergonia, urgente!

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